segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ouvindo José Castello

Para começar bem a semana, divido um trecho do livro "A literatura na poltrona" de José Castello que estava relendo essa manhã.

Os grifos são meus, cópia do que faço em meus livros (à lápis, claro!)

"Procurei Hélène Cixous em busca de uma inacreditável interpretação intelectual da obra de Clarice. E encontrei algo ainda mais inacreditável: uma filósofa a quem a leitura de Clarice transformou, ela também, em uma bruxa. Livros que devoram pessoas. Pessoas que encontram partes preciosas de si não em outras pessoas, mas em livros. Romances e poemas que penetram, em segredo, a mente de seus leitores — e que estragos eles fazem! Escritores que se buscam (e que se encontram!) em outros escritores. Hélène, que tentou se achar em Ingeborg, mas se achou em Clarice. Vidas atravessadas, encontros e desencontros, confluências e afastamentos, idéias que, desde então, não me abandonariam mais. Seria isso, então, a literatura? (...)

Em vez de fazer novas perguntas, eu devia me limitar a ouvir Hélène Cixous, concluí. Fazer do silêncio, um caminho. Da espera, uma resposta. E das respostas, perguntas. Era isso. Ali, naquela encruzilhada, se apresentava a chave de uma maneira de encarar a literatura e a arte, uma maneira pessoal e secreta. (...) Minhas armas, dispostas naquele bloco escolar, já não valiam de nada. Era preciso ceder, ceder e ouvir. Só isso me restava, e nem chegava a ser uma escolha.
(...)

"O que a fascina tanto em Clarice?", me arrisco, ainda, a perguntar — pois, até ali, Hélène se limitava a responder perguntas que eu não tinha feito. Ela responde: "Clarice tem vários personagens, mas é sempre ela." Depois de um silêncio rápido, me oferece uma segunda explicação: "Clarice é uma escritora filosófica. Ela pensa, e as pessoas não têm o hábito de pensar." E isso, fazer o quê ninguém faz, fascina, ela diz. Nesse momento, sem saber, Hélène respondia à pergunta que mais me atordoava. Por que as pessoas se encontram, se prendem, se perdem, se acham em livros? Por que livros pensam por elas, por que invadem sua intimidade e passam a ser parte de quem lê?

(..)Livros, telas, músicas, filmes, peças de teatro que invadem, desestabilizam e completam pessoas. Leituras que, em vez de nos distanciar do real, dele nos aproximam ainda mais, e também de nós mesmos. Livros só existem na mente do leitor. São objetos agudos, que penetram, contaminam e atordoam. Livros cortantes como facas. Ninguém lê impunemente. A relação fatal que temos com a literatura (ou não temos relação alguma, temos só um laço vaidoso e mentiroso) sempre norteou, na verdade, minha experiência de jornalismo literário. Princípio que não aprendi na escola, e que não costuma ser debatido, ou transmitido, nas redações da imprensa. Princípio, contudo, que sempre me pareceu crucial. Sem ele, o jornalismo literário se torna só um exercício de retórica, ou, no máximo, a aplicação temerosa de um conjunto de técnicas. Neste caso, ele se transforma em uma tradição, e não, como deve ser, em uma descoberta. Para que mais alguém lê um livro, senão para se transformar? Ler mecanicamente, por obrigação, ou para dizer que li, isso nunca me interessou.
(...)

Ali, desarmado (as perguntas que eu anotara em um bloco continuavam jogadas sobre o sofá, inúteis como lixo), solitário como poucas vezes me senti, aos poucos, com grande ansiedade e alguma perturbação, comecei a formular a imagem que, desde então, tenho do jornalismo. Ser capaz de ouvir, e de suportar a presença imprevista do outro, as surpresas que nos oferece, a desarmonia de suas idéias. Chegar de mãos vazias e aceitar o que me dão. Entregar-me, em vez de esperar que o outro se entregue. Desarmar-me, ainda que seja para encontrar o que não desejo encontrar.

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