domingo, 27 de julho de 2008

Recomendo "A casa da madrinha"

Nesse final de semana, assisti com meus filhos a peça A Casa da Madrinha, no Teatro Leblon (Sala Fernanda Montenegro). O texto é um clássico da Lygia Bojunga Nunes. E não perdendo o que a autora transmite de melhor em seus textos, o espetáculo, cheio de música, traz uma bonita mensagem de perseverança.

A adaptação é de Herson Capri e Susana Garcia. O Teatro do Leblon fica na Rua Conde Bernadotte, 26. O ingresso custa R$ 30,00 e o espetáculo está em cartaz até 3 de agosto, aos sábados e domingos, às 17h.

Aproveitem! Para não confiar apenas na opinião de um adulto, curtam os comentários de minha filhota: "Mãe, adorei! Gostei muito da gatinha e do, como é mesmo o nome, ah, do pavão"!

Resumo da história: "O jovem Alexandre, vendedor de picolés, abandona a escola por problemas financeiros e resolve procurar a casa da madrinha. No meio do caminho ele encontra um pavão, que se torna companheiro de viagem.

Sem dinheiro e comida, eles resolvem fazer um show em praça pública onde o Pavão seria a grande estrela. Lá, eles conhecem a menina Vera. Ela embarca na aventura montada no cavalo AH.

O trio percorre caminhos desconhecidos cheios de obstáculos. Depois de vencerem o medo e a escuridão, os três encontram a Casa da Madrinha, onde todos os sonhos tornam-se realidade."

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Concursos literários

Dica para tirar da gaveta aquele material retrabalhado nem sei quantas vezes...

O site Meiotom está atualizadíssimo para as próximos concursos literários. Também é possível acessar os resultados dos últimos concursos.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Descoberto sobrado onde viveu Machado de Assis

Fonte: Caderno Idéias do Jornal do Brasil, edição de sábado (19/07/2008).

Saiu publicado em primeira página notícia sobre a descoberta de uma residência de Machado de Assis, que todos davam por demolida, e agora por Decreto Municipal será tombada como patrimônio histórico municipal.

Digitei abaixo parte da reportagem.

Você sabe quem morou aqui?
Sobrado onde Machado de Assis viveu em 1874 será tombado como patrimônio histórico
Por Mariana Filgueiras

Das lendas que cercam Machado de Assis, uma explica o epíteto Bruxo do Cosme Velho: de tanto queimar manuscritos rejeitados numa caldeirinha, os vizinhos, estranhando o hábito, começaram a chamá-lo dessa maneira. Pegou. Bruxo do Cosme Velho também era uma forma de fazer alusão a sua prestidigitação, arte de enganar leitores e críticos com a sofisticação do talento. E o Bruxo até hoje apronta das suas. O último feitiço póstumo de Machado foi enganar os próprios biógrafos. Ao contrário do que se lamentava, nem todas as moradas do escritor foram postas abaixo. O sobrado em que viveu com a mulher Carolina na Rua da Lapa, 96 – durante o ano de 1874, antes de mudar-se para o Cosme Velho – continua de pé. O imóvel acabou de ser incluído no Decreto Municipal do Corredor Cultural e será tombado como patrimônio histórico municipal.

Completamente depredado, com a fachada pichada e a fiação elétrica clandestina escondendo os detalhes do estilo neoclássico, o casarão – que antes abrigava apenas um morador no primeiro andar e o casal Machado de Assis e Carolina no segundo – hoje é espremido por pelo menos 15 famílias, com pouco mais de 10 metros quadrados para cada. Difícil imaginar que foi ali que Machado concebeu um romance sobre a burguesia ascendente da época, A mão e a luva, publicado em capítulos na imprensa.

– Aqui está mais para O cortiço, de Aluísio de Azevedo – comparou um dos moradores atuais, o professor de português e inglês Anderson Clay Sampaio, de 31 anos, surpreso ao saber que mora na antiga residência do escritor.

A referência faz sentido. Até um andar intermediário – o popular puxadinho – foi construído em passado recente, entre o vão de um piso e outro, para acomodar mais gente. Além de Anderson, pagam o aluguel mensal de R$ 200 funcionários públicos, donas de casa, camelôs e travestis. Mais Brasil, impossível.

Só agora, 100 anos depois da morte do escritor, matou-se a charada histórica – ou o feitiço póstumo, vá saber! – que deixou a ilustre morada olvidada tanto tempo. Técnicos da Secretaria de Patrimônio Histórico descobriram que as reformas urbanas do século 20 alteraram a numeração da região da Rua do Riachuelo, da qual faz parte a Rua da Lapa. Assim, o antigo número 96 virou o atual 264, e foi ignorado pelas biografias do escritor. Que, vivo fosse, provavelmente transformaria em mais uma obra-prima o romance realista e decadente que virou a sua Lapa.

Antigo manuscrito da Bíblia disponível na Internet

Saiu publicado ontem na Reuters Brasil, uma notícia sobre a disponibilização de uma das cópias mais antigas da Bíblia, na Internet.

Leia a matéria abaixo, na íntegra.

Antigo manuscrito da Bíblia estará disponível na Internet
Por Dave Graham
BERLIM (Reuters) - Mais de 1.600 anos depois de ser escrita em grego, uma das cópias mais antigas da Bíblia se tornará globalmente acessível via Internet pela primeira vez esta semana.
A partir de quinta-feira, partes da Codex Sinaiticus, que contém o Novo Testamento mais velho e completo, estarão disponíveis na Internet, afirmou a Universidade de Leipzig, um dos quatro conservadores do texto antigo.
Imagens em alta resolução do Evangelho de Marco, diversos livros do Velho Testamento e observações dos trabalhos feitos ao longo de séculos estarão em www.codex-sinaiticus.net, num primeiro passo para a publicação online integral do manuscrito até julho próximo.
Ulrich Johannes Schneider, diretor da Biblioteca da Universidade de Leipzig, afirmou que a publicação online do Codex permitirá que qualquer um estude uma peça "fundamental" para os cristãos.
Alguns textos estarão disponíveis com traduções em inglês e alemão, acrescentou.
Especialistas acreditam que o documento, datado de aproximadamente do ano 350, possa ser a cópia mais antiga conhecida da Bíblia, junto com o Codex Vaticanus, outra versão antiga da Bíblia, colocou Schneider.
"Acho que é fantástico que graças à tecnologia agora podemos tornar acessíveis os artefatos culturais mais antigos -- aqueles que de tão preciosos não poderiam ser vistos por ninguém -- numa qualidade realmente alta", explicou Schneider.

Dicas sobre contos

Acabei de ler um texto interessante com várias dicas sobre como escrever um conto com qualidade. São dicas da oficina de Marcelino Freire, que foram oferecidas na Academia Internacional de Cinema (SP).

O texto pode ser conferido no Digestivo Cultural, na seção Blog de 21/07/2008.

Fiz um pequeno recorte aqui, pois boa informação nunca é demais.

- Corte os elementos que comprometem a leitura, como advérbios que terminam em "mente", lugares-comuns, redundâncias, palavras "enfeitadas" (sofisticadas), obviedades, entre outros.

- Busque escrever uma história com "sombras", ou seja, envolta de mistério e metáforas e que, com a revelação do tema (que pode estar no título ou em uma forte referência no final), o texto ganhe mais força.

"É o que não está escrito, é o que se revela depois. Um conto se conta mais pelo o que não está escrito", diz Marcelino Freire.

- Dê mais atenção à primeira frase de um conto.

- Outro elemento lingüístico que se deve atentar, segundo Marcelino, é o adjetivo. Um exemplo ruim dado por ele é escrever "o homem triste". "Assim, você não precisa criar um ambiente triste, o adjetivo te facilita a vida e ajuda a empobrecer o texto", opina.

- Uma dica para fugir dos clichês: tentar lembrar de coisas inusitadas para compor uma lembrança, um ambiente.

- Um dos problemas mais recorrentes nos textos é a burocracia ― ou excesso de explicação. Repetir a mesma sensação com outras palavras, engessa o texto.

- Princípio básico da escrita: a releitura.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Conto "Retrato na estante"

O conto abaixo recebeu Menção Honrosa no 13º Concurso Literário do Servidor Público do Estado do Rio de Janeiro, promovido pela Fesp. Foram 401 contos inscritos. Servidores públicos das três esferas, domiciliados no Rio de Janeiro.

Obs: Fiz umas pequenas correções no texto, que só percebi depois que ele dormiu mais alguns meses na gaveta, a mesma de onde havia saído para a Antologia dos contos vencedores.

Retrato na estante
Ana Cristina Melo

Ele me observa sobre a estante sem ter coragem de me tocar. Sempre estive à frente de Virginia Woolf, entre Kafka, Flaubert e Drummond. Nunca entendi essa sua forma de arrumar os clássicos. Foi a única coisa de que me arrependo. Não ter lhe questionado qual era seu critério.

Hoje sou apenas esse retrato na estante. Não restou nenhuma roupa, nenhum vestígio. Mas ele ainda necessita de minha presença. Da necessidade de me encurralar entre suas histórias.

Tudo começou há cinquenta anos. Até eu me surpreendo com esse meio século que se passou. Tinha dezoito anos, dez a menos que ele.

Eu era apenas uma menina com sonhos, presa a uma pacata cidade de interior. Ele chegou na rodoviária sem bagagem, mas trazia seu projeto muito bem engendrado.

Eu não devia estar naquela praça. Normalmente não estaria ali, mas naquele dia havia decidido sair de casa. Tinha uma ansiedade soprada pelo destino. Havia uma celeridade em meus atos e, há algum tempo, o ar sem pressa daquele lugar me sufocava.

Acho que fui a primeira a vê-lo descer do ônibus. E acho que fui a única que ele enxergou. Dirigiu-se a mim e seus cabelos loiros brilhavam tanto ao sol, que tudo parecia uma cena dos filmes que eu assistia na praça, na única sessão mensal.

Perguntou-me sobre um lugar que pudesse pernoitar. Hipnotizada com seus olhos verdes, levei-o até a pousada de meus pais.

Em sua ficha, amalgamados apenas o nome Arnaldo, um sobrenome estrangeiro e a palavra escritor. Três palavras que me encantaram. Nunca ouvira falar a seu respeito. Naquele fim de mundo não se falava de literatura. Por curiosidade li Monteiro Lobato e Machado de Assis. O diploma do colegial servia para enfeitar a parede da sala de minha mãe. Tive curiosidade em conhecê-lo de perto. Tocá-lo, meio que para descobrir se escritor era gente como nós.

Fui ao seu encontro no quarto onde se recolheu, logo após pagar uma semana de hospedagem. Bati duas vezes e ele abriu com um sorriso largo, um pouco torto no dente canino. Antes que eu inventasse uma desculpa para justificar meu impulso, ele me perguntou se eu o acompanharia pela cidade.

Concordei. Mostrei-lhe o pequeno comércio, no qual ele comprou algumas peças de roupa. Não havia muito o que mostrar – a praça com seu coreto, a feira de artesanatos e as cachoeiras.

Ali na queda d’água menos visitada, atrás da pedra que eu usava para me esconder nas brincadeiras de criança, fui surpreendida com um beijo. Não fora meu primeiro, mas certamente fora o mais intenso. Era loucura, eu sabia, mas havia me apaixonado por aqueles olhos verdes. Suas palavras me causavam torpor e seus beijos me roubavam daquela realidade da qual há algum tempo eu me imaginava fugindo.

Namoramos atrás daquela pedra, por toda aquela semana, sem que avançássemos mais do que os seus toques ousados em meu corpo. No último dia, propôs-me que fugisse com ele. Não o conhecia, não sabia de onde ele vinha, nem para onde ia. Apenas desejava – como se tivesse querido isto no ventre de minha mãe – não morrer naquele lugar.

Combinamos tudo e, assim como ele fez, parti dali com a roupa do corpo. Apenas uma bolsa com algumas lembranças. Entrei no ônibus que seguia para a cidade vizinha. Ao descer, ele me esperava. Dali seguimos para muito longe.

Ele me comprou roupas e até um nome. Minha identidade continuou a me exibir como Angelina, mas Arnaldo não gostava de meu nome e disse que eu passaria a me chamar Virgínia.

Foi a primeira concessão que fiz. Meu pequeno grande erro. Viajamos de cidade em cidade, sem que ele me tornasse sua mulher. Disse que só o faria quando nos casássemos.

Eu enlouquecia pensando no momento em que me entregaria a ele. Era meu único desejo e objetivo. Não o percebi me moldando. Cortando meus cabelos longos e pretos e deixando-os curtos e castanhos. Decidindo minhas roupas e escolhendo o que eu deveria comer. Determinando a hora em que eu deveria acordar e me recolher. Adaptando meu paladar para comidas e bebidas. Plasmando minhas frases e pensamentos.

Um mês depois de fugir com ele, nos casamos num lugar cujo celebrante falava uma língua de que entendi poucas palavras.

Ele me levou naquela noite para um hotel luxuosíssimo, e subiu comigo em seus braços para a suíte. O quarto tinha uma grande cama de dossel coberta por um cortinado de voile. Toda a madeira era trabalhada com pequenos labirintos. A mesma madeira, escura, sobressaindo no cortinado branco. Uma cama assim não me parecia real, igual a mim, que me sentia irreal diante de tudo que acontecera naqueles últimos dias: a fuga, as aulas, a cerimônia de casamento.

Em pé ao lado da cama, ele me despiu completamente, deitando-me em seguida. Meu corpo estremeceu com o contato da pele quente com os lençóis frios de cetim. Ele se sentou e em vez de me tocar, se inclinou para a lateral da cama, e, de dentro de um jarro, retirou pétalas que pareciam congeladas, esfregando-as sobre mim. Meu corpo estremeceu mais uma vez.

Eu o desejava, com a mesma intensidade do medo que eu tinha do que iria acontecer. Ele se despiu e era a primeira vez que eu conhecia a nudez de um homem. Não houve carícias nem palavras. Ele se pôs sobre mim, e mal senti seu falo rijo me tocar, e o tive alcançando o meu íntimo, num só movimento. Nunca esqueci aquela dor, e acho que era esse o seu objetivo.

Em vez de gozo, escorri-me em lágrimas.

Na manhã seguinte, acordei com Arnaldo alucinadamente teclando uma velha máquina de escrever. Fiquei na cama sem ter coragem de me aproximar. Na realidade, me perguntava o que fazia ali. Talvez tenham se passado umas duas horas até que ele impelisse silêncio à máquina. Levantou-se e me viu. E se aproximou ignorando o quanto eu tremia e pedia para que ele não o fizesse. Deu-me todas as carícias e sensações que eu imaginara sentir da primeira vez. E, quando copulamos, foi como se nada de mais fantástico pudesse existir.

E assim aconteceu nas vezes seguintes. Por um, dois, muitos anos. Eu ia aonde ele queria, comia a comida que ele escolhia, velava seu trabalho na máquina, enquanto passeava os dedos pelas dezenas de livros de sua biblioteca. Como prêmio, na cama ele me impelia a sensações indescritíveis. E eu sempre sabia quando seria levada para o quarto. Era quando ele pegava um retrato meu que ficava na estante, e passeava os dedos pelo meu corpo inerte.

Desde a primeira semana de casamento, decidiu que eu precisava conhecer as Letras. E toda noite após termos relações, ele lia um trecho de algum livro para mim. Eu me excitava em reconhecer a capa antes perdida entre tantas outras, e me sentia escolhida, como aquele livro. Eu buscava entender e interpretar com prazer cada história. E ele se alimentava disso. Assim conheci os grandes, os clássicos, os inesquecíveis. De contos a romances. De poemas a peças teatrais. Os livros em quase sua totalidade estavam na língua pátria dos escritores. Ele me dava sua interpretação, portanto nunca soube se eram apenas idiossincrasias do que sua verve crítica considerava como perfeito.

Um dia, após sete anos, eu desejei filhos e lhe disse isso. Ele me olhou feroz. Seus olhos pareciam brasas. Puxou-me pelos cabelos para o andar de cima. Despiu-me como na primeira noite, e se embrenhou para dentro de mim sem prenúncios. Suas únicas palavras foram: “Nunca mais deseje nada”. Dormi entre lágrimas e a lembrança da dor, que, então, descobria ser minha punição.

Na manhã seguinte, ele teclava violentamente sua máquina de escrever. E mais uma vez, tomou-me como o mais voraz dos amantes. E mais uma vez eu esqueci.

Mas depois daquela noite, algo de diferente aconteceu em nós dois. Ele se sentiu poderoso para escrever e me dizia que nada em minha vida, antes de o ter conhecido, era digno de ser escrito. Intitulava-se meu sopro de vida, meu criador. Eu comecei a desejar um ar diferente, que não era respirado dentro daquelas paredes.

Não tardou para ele perceber e eu pressenti o que iria ocorrer, pela crueldade do seu olhar. Sussurrei que não o fizesse, mas ele ignorou. Na manhã seguinte, a máquina em frenesi. Mas não havia mais conivência. Ele, então, saiu e trancou a porta.

A partir daquele dia, ele me manteve enclausurada naquele quarto. Vinha toda noite, e eu nunca sabia quando ele me tocaria amavelmente ou.

Eu enxergava todas as estações pela janela do quarto, e me acostumei a isso, sem perceber que houvera uma liberdade, num tempo em que ele não existia.

As histórias continuavam toda a noite, após ele me possuir, sem que eu fosse capaz de voltar a sentir prazer naquelas palavras.

Houve um tempo em que ele não se satisfez com a minha resignação. Ele necessitava de revolta, de instabilidade para produzir poder para sua escrita. Ele não era capaz de criar personagens verossímeis, precisava tê-los em carne e osso e manipulá-los, para escrever sobre eles. E ele buscava essa revolta em mim, com sutilezas que destruíam minha alma.

Não havia grades na janela. Seria completamente possível eu fugir dali. Talvez me machucasse um pouco, mas sobreviveria. Por que não o fiz? Temia o desconhecido. Não lembrava que não havia tido esse temor quando fugira com ele.

Assim, me deixei ficar naquele quarto, por vinte estações. Um dia, antes de sair, ele permitiu ficar para trás um livro. Era sobre Sherazade. Passei a ler escondida enquanto ficava só. Ao finalizar a história, senti o quanto aquele quarto era sufocante. Cheguei perto da janela, mas não tive coragem de transpô-la.

Então, planejei tudo. Da mesma forma que ele o fizera. Levei-o ao máximo da fúria, dizendo-lhe tudo que eu desejava, que eu sentia. Revelei-me de carne e osso, uma personagem fugidia de seu romance. Ele enlouqueceu. Quebrou tudo em volta. Lacrou as janelas, por onde nunca tive coragem de fugir. Cortou a luz e a comida, e me abandonou ali por dias.

Quando voltou, me encontrou deitada, inanimada, enfim uma personagem eternizada.

A partir desse dia o vigio do retrato na estante. Ele me olha ainda com veneração, mas nunca mais ousou me tocar. O som da máquina de escrever nunca mais foi ouvido nessa casa.

A minha vingança é que ele nunca saberá se eu realmente existi ou se fui apenas fruto de sua imaginação.

(Versão atualizada em 07/05/2009)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Movimento livro na mão

"Ao sair de casa, perguntem-se: com que livro eu vou hoje? Nem que seja somente para fazer companhia. Para estar perto dele. Mas anseie por uma conseqüência. Provoque inveja. Abra-o em público. Levante a capa, para que o título apareça. Dê sorrisos. Suspiros. Na hora de pagar a conta no caixa, deixe ele por cima da mesinha, para que o cobrador e o que está atrás de você na fila vejam qual é. No metrô, tente ficar em pé, mais gente vai poder ler. Ande com ele. Deixe-o escorregar de vez em quando, vai chamar a atenção do mais desligado. Trombe com as pessoas. Ofereça, se alguém demonstrar interesse." (Manifesto do Livro na Mão)

O máximo, não? Descobri sobre ele no Jornal Rascunho desse mês. Idealizado pela jornalista Cris Rogerio, busca incentivar a leitura pela simples exibição dos livros que estamos lendo. E melhor do que palavras, é mostrarmos essa paixão pela leitura, exibindo nossos livros onde estivermos. Na fila do banco, na condução, sobre a mesa do trabalho. E assim, esperando o interesse do outro. Uma verdadeira pescaria de leitores, com a melhor das iscas: o próprio livro.

Foi assim que fiz com meu filho, e hoje, aos 10 anos, já deve ter lido uns 30 livros, inclua-se aí alguns com cerca de 500 páginas.

Visitem o blog do Movimento (http://livronamao.blogspot.com/) e leiam o artigo de Luiz Bras, no Jornal Rascunho.

Vale a pena! Já coloquei o link aí ao lado. É para nunca esquecer de dar uma passadinha.

Teoria do conto, segundo Cortázar

No Jornal Rascunho desse mês, Rinaldo de Fernandes, na seção rodapé, nos traz um pequeno texto sobre a teoria do conto, segundo Cortázar. A matéria pode ser lida no site do Rascunho.

Em resumo, para Cortázar, as narrativas curtas necessitam ter:

1) significação - o conto, como a fotografia, "recorta um fragmento da realidade", devendo, portanto, ser "significativo", ou seja, ser capaz de uma "abertura" que projete a inteligência e a sensibilidade do leitor para além da história narrada;

2) tensão e intensidade - o conto "parte da noção do limite e, em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle". O conto deve compactar as situações. Deve ser uma "máquina de gerar interesse", ou seja, ter a capacidade de prender a atenção do leitor;

3) capacidade de desprender-se do autor - o conto deve ser alheio ao escritor enquanto "demiurgo". O leitor do conto deve ter a sensação de que "de certo modo está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais com a presença manifesta do demiurgo".

O que é o romance?, com a palavra Raimundo Carrero

Ontem chegou meu exemplar do Rascunho, do mês de julho. Uma das cartas dos leitores me fez retomar o artigo que Raimundo Carrero publicou no mês passado. Intitulado “O que é o romance?”, ele apresenta o quadro atual, no qual a ficção se dilacera entre a obra de arte e a obra voltada apenas para o leitor, transformada em mercadoria.

Apesar de concordar que a diversificação do mercado se justifica quando se busca o sustento das editoras, Carrero aconselha que os escritores não se preocupem com as vendas, buscando um caminho que possibilite a sobrevivência do romance. E como conclusão, ele aponta um meio-caminho entre a simplicidade e a sofisticação, aliás, tema do seu próximo livro: “As estratégias do narrador”, a ser publicado em breve pela Editora Iluminuras.

Abaixo tomo a liberdade de reproduzir o artigo de Carrero, com a minha alegria e satisfação pela leitura, que merece ser apreciada e reapreciada, assim como os bons romances.

“A morte do romance tem sido anunciada ao longo dos tempos. Desde o começo do século 20, por exemplo, quando Georg Lukács viu a narrativa se distanciando da epopéia e, por isso mesmo, perdendo forças. Depois reviu a posição. Nesse mesmo tempo, o texto de ficção passou por muitas experiências, entre as mais notáveis no Ulisses, de Joyce, e no Em busca do tempo perdido, de Proust, no movimento latino-americano, que revelou García Márquez e Mario Vargas Llosa, até chegar ao medíocre romance norte-americano de hoje, que envolve ainda os grandes vendedores.

Neste momento, portanto, a ficção se dilacera entre a obra de arte e a obra voltada apenas para o leitor, transformada em mercadoria. Aliás, os próprios autores norte-americanos tentaram reunir nas suas narrativas as técnicas do romance policial e a história compra-e-vende dos europeus, para combater, por exemplo, os árabes e indianos, que escrevem – e são educados – em inglês. O mercado se diversifica, numa clara estratégia de mercado, o que não é de todo ruim: afinal, alguém tem de vender para sustentar as editoras.

Então nós temos aí duas realidades incontestáveis: a arte e o mercado. Como, então, devem se comportar os escritores? Em primeiro lugar não se preocupando com a questão das vendas, o que deve interessar somente aos editores. Afinal, eles vivem disso. E os escritores não vivem disso? É a segunda parte desta reflexão e que me interessa muito. As vanguardas exauriram a narrativa, até pela própria natureza de movimento literário. Mas só pode haver mudança através das vanguardas? Acredito, sinceramente, que não. No entanto, devemos encontrar um caminho que também possibilite a sobrevivência do romance. E ela se dá entre a simplicidade e a sofisticação, tema do meu próprio livro sobre o assunto: As estratégias do narrador, que deve ser publicado logo pela Iluminuras.

Na simplicidade, o romance deve chegar aos olhos do leitor com tal leveza que não exija nenhum tipo de quebra-cabeça, tornando-se cada vez mais leve. Aí está o segredo. No entanto, isto não quer dizer que o escritor abdicará das técnicas interiores, que se revelarão na sofisticação. Esse caminho, aliás, já estava sendo preparado por Machado de Assis, sobretudo nos contos, e em Dom Casmurro, um dos romances mais bem elaborados do final do século 19 e começo do 20, equiparando-se ao que de melhor se escreveu na Europa. Não é sem razão que Harold Bloom escreveu: "Machado de Assis é um milagre". E que Susan Sontag, surpreendida a cada palavra, dizia que a escrita daquele mulato carioca era tão sofisticada que não podia entender o fato de ele nunca ter se afastado do Rio de Janeiro mais do que alguns quilômetros. Aí reside um tanto de preconceito. Mas tudo bem.

Simplicidade e sofisticação

É claro que ninguém vai imitar Machado nem se quer revolucionar o romance – isso está fora de cogitação. Mesmo assim, chamo a atenção para o fato de que ele pode ser lido por todos, sem qualquer problema. Dois dos seus contos chamam a atenção justamente por causa da simplicidade e da sofisticação: O Machete e Um homem célebre. Embora Missa do Galo tenha se tornado o mais famoso, e reescrito até a exaustão, esses dois reúnem elementos que podem apaixonar qualquer leitor comum – pela simplicidade –, sem deixar de lado aquilo que de mais notável pode se escrever, recorrendo a técnicas de montagem e de desenvolvimento de enredo.

Só para lembrar: O Machete começa pela técnica do personagem ilustrativo, na figura do pai de Inácio Ramos – o personagem central – para desaparecer imediatamente no segundo parágrafo, sabendo-se apenas que ele morreu. Nada mais sutil. Naquele primeiro parágrafo que pode – reitero – ser lido por qualquer um há uma carga técnica impressionante. O personagem – o pai – ilustra o caráter de Inácio Ramos – o personagem – sem cair no lugar-comum e possibilitando uma leitura agradável.

Pelos movimentos internos demonstra-se que a relação pai e filho não é afetiva, embora não diga isso em lugar algum. É possível perceber o afeto e o entusiasmo quando aparecem, logo em seguida, o velho músico alemão e a mãe, esta sim, tratada com muito carinho, e colocada em oposição ao pai. Sem que o narrador tenha que dizer. A leitura, por si só, revelará os sentimentos.

Isso quer dizer: técnica. Não é regra – lembro sempre: não existem regras para a ficção. Mas um caminho a que o escritor pode ou não recorrer para o estudo. Nada mais do que isso. Sem encrencas nem debates. Tenho o maior respeito pelos que divergem de mim. Só quero pensar. Talvez discutir. Mas todos têm razão. E isso é o que importa: o amor pelo romance. Enfim, pela escrita. Por isso mesmo, encontro aí motivos suficientes para que se possa trabalhar o romance, cujos caminhos são cada vez mais ricos, mesmo que se recorra, em certo sentido, ao passado.”

RAIMUNDO CARRERO é escritor, jornalista e professor de criação literária. Publicou, entre outros, Somos pedras que se consomem, As sombrias ruínas da alma, Sombra severa, Ao redor do escorpião... uma tarântula? e O amor não tem bons sentimentos. Nasceu em Salgueiro (PE), em 1947. Vive em Recife (PE).

terça-feira, 15 de julho de 2008

98 pedaços de um amor

Britânico leva 15 anos para colar pedaços de 98 cartas de amor
Fonte: BBC Brasil.com

Um britânico de 82 anos de idade passou os últimos 15 anos remontando 98 cartas de amor enviadas à sua esposa que haviam sido picotadas em mais de 2 mil pedaços.

Tom Howard enviou as correspondências durante os sete anos que passou viajando pela Europa como trabalhador rural nas décadas de 40 e 50.

Sua esposa, Molly, rasgou as cartas depois de encontrar alguém lendo a correspondência, em 1953.

Ela picotou cada carta em pelo menos 20 pedacinhos de papel, alguns de tamanho bem pequeno.

Dedicação

Howard começou a encaixar e colar os pedaços em 1993 e terminou a tarefa nesta semana, três anos depois da morte de sua esposa.

Ele começou separando os pedaços que pertenciam aos cantos e à parte central das correspondências antes de montar o restante de cada carta.

Durante 15 anos, Howard ficou pelo menos uma hora por dia trabalhando na reconstrução das cartas de amor.

"As cartas trouxeram de volta tempos tão bons", afirma. "Ainda sinto muita falta da Molly, mas ter essas lembranças me ajuda."

Ele planeja agora escrever um livro baseado nas cartas e dedicará a obra à sua falecida esposa.

Amor à primeira vista

Aposentado, Howard afirma que sua história com Molly foi um caso de "amor à primeira vista".

"Foi em uma festa da nossa vila, e essa moça pulou do carrossel e veio correndo em minha direção", conta. "Era a Molly, e isso aconteceu em 19 de julho de 1948."

Na época, ela tinha 18 anos, e ele, 23. Eles se casaram em 1955 e tiveram três filhos e seis netos.

Antes de tentar escrever o livro sobre as cartas de amor, Ted Howard escreveu sua autobiografia.

Intitulada Life on the Fen Edge ("Vida à Beira do Brejo", em tradução literal), a biografia será publicada pela editora britânica Bound Biographies.

domingo, 13 de julho de 2008

Leitura dramatizada - ABL

No próximo dia 17, quinta-feira, a atriz Fernanda Montenegro realizará uma leitura dramatizada da obra "Capitu - Memórias Póstumas", do acadêmico Domício Proença Filho.

A apresentação acontecerá a partir das 18h30, no palco do Teatro R. Magalhães Jr. da Academia Brasileira de Letras, com entrada franca.

Fonte: ABL.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Contos reescritos

Quarenta escritores brasileiros vão recriar dez das melhores histórias de Machado de Assis. O livro Capitu mandou flores (Geração Editorial, 528 pp., R$ 49,90) surgiu da idéia do premiado contista Rinaldo de Fernandes. Os dez contos reescritos são "Missa do Galo", "A Cartomante", "O Espelho", "Noite de Almirante", "A causa secreta", "Pai contra mãe", "O Alienista", " Uns braços", "O Enfermeiro" e "Teoria do medalhão". Ampliando o projeto, alguns autores recriaram também trechos e situações do romance Dom Casmurro.

Fonte: PublishNews, de 10/07/2008

Falando em Drummond

Falando em Drummond, lembrei que essa semana, numa das aulas da Lívia Garcia-Roza, ela nos contou como se apaixonou pela poesia de Drummond.

O livro de poesias "A Rosa do Povo" foi escrito entre 1943 e 1945, quando os horrores da 2ª Guerra Mundial, não só chocavam a humanidade, como despertavam a necessidade de se captar e tratar as angústias daquele momento.

Abaixo, o final do poema "O mito", cuja temática é o amor.
"O mito" faz parte do livro "A Rosa do Povo".

E digo a fulana: amiga,
Afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
Mas somos a mesma coisa

( uma coisa tão diversa da que pensava que fossemos.)

Conto "O banco de Drummond"

Vivemos realmente tempos difíceis. Nem os óculos do Drummond escapam. Aproveitando o gancho, acho que está na hora de mostrar o texto a seguir.

O conto “O banco de Drummond” ficou em 1º Lugar no 2º Concurso de Literatura da Cidade de Gravatal.

Este é um conto antigo, um dos primeiros que escrevi. Lapidando daqui, cortando dali, o resultado ainda não me satisfez. Fiquei na dúvida se o publicava aqui, mas acho que preciso me desligar dele, para conseguir encontrar sua forma perfeita.

Espero que gostem!

O banco de Drummond
Ana Cristina Melo


As ondas se formavam longe e chegavam à praia num convite ao mergulho. Sobre um banco no calçadão, a estátua de metal em tamanho natural, de Carlos Drummond de Andrade, espelho do que o poeta fazia ao entardecer, meditando ou simplesmente apreciando o mar. Ao seu lado, Cirilo, remoendo lembranças e digerindo incertezas.

“Pena que você está de costas, o mar está tão bonito hoje, amigo! Parece que nem presenciou aquela agressão de ontem”.

“Que idéia daquela idosa reagir àquele pivete? Não perdeu a bolsa, mas ganhou alguns hematomas. Aquele menino não teve mãe... ou teve apenas quem o parisse e o jogasse nesse mundo”.

Cirilo continuava seu monólogo, aguardando o discursar de seu companheiro.

Sentava-se naquele banco, no calçadão, em frente ao mar de Copacabana, há uns oito anos. Já fazia parte da paisagem do lugar, assim como Drummond. A quem perguntasse, Cirilo respondia que vinha diariamente, de 7h às 10h, para visitar o amigo. Apiedou-se dele desde o dia que o deixaram ali à própria sorte. Houve até festa, veio o Prefeito. Depois disso, ninguém mais apareceu; só Cirilo que vinha sempre.

Tinham longas prosas. Falavam de política, das lindas mulheres se bronzeando, dos atletas de calçadão, de livros, principalmente de livros. Certa vez, Cirilo recitou ao amigo o excerto de um poema.

– Parece você, saído de ti. Ouça: “Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”.

Foi numa manhã de dezembro que Cirilo viu seu amigo proseando com um menino de uns sete anos. Era segunda-feira, mas havia no garoto o viço de fim de semana, quando todas as alegrias nos são permitidas.

– Oi! – disse Cirilo.

– Oi! – o menino respondeu com pouco interesse.

– Bonito dia, hein!

– É. Se eu tivesse uma bicicleta, adoraria andar nesse calçadão.

– Não tem? – o menino negou com a cabeça.

– Por que não pede?

– Deixei de pedir quando entendi que minha mãe não teria condições para me dar.

– Ah!... Meu amigo não quer papo, hoje, não é?

– Que amigo? – o menino o olhou incrédulo.

– Ora, ele! – apontou para a estátua como se de gente se tratasse.

Pensou em responder que a estátua não falava. Perspicaz, se calou. O moço devia ser maluco, vivendo com um amigo imaginário.

Mudaram de assunto. Pouco depois, o menino se foi. No dia seguinte, Cirilo o encontrou no mesmo lugar. Ficou com ciúme do amigo que o traía.

– Você de novo? – Cirilo não estava muito cordial.

– Sim.

– Por que está aqui?

– Para me despedir.

– Do quê? – Cirilo ficou intrigado.

– Da cidade. Minha mãe veio para cá ainda menina, sozinha. É nordestina. Ela conta que tinha quinze anos quando chegou. Foi um conhecido de meu avô que trouxe, para trabalhar na casa dele. Mas logo a patroa a dispensou e ela se viu sozinha, sobrevivendo de faxina e morando num quartinho sem janela. – o menino relatava a vida da mãe, enquanto acompanhava o movimento do mar, como se achasse ali as palavras – Ela sempre me conta que a primeira alegria que teve foi ver o mar. Nunca teve coragem de entrar. Eu já cheguei bem perto. Tentei entrar, mas uma onda me pegou. Acabei ralando o joelho. Fiquei assustado e nunca mais voltei.

Cirilo ouvia o menino tagarelar sua vida, mudo, mas atento.

– Num dia de folga, conheceu meu pai. Disse que ele falava bonito. Apaixonou-se, e quando minha mãe ficou grávida, ele desapareceu... Luta muito para me criar. Eu me viro sozinho durante o dia, mas às vezes nos falta comida. Ultimamente, temos sorte, conseguimos quentinhas na Igreja. Minha mãe aproveitou para juntar dinheiro e comprar duas passagens. Diz que se é pra passar necessidade, que seja na terra dela. Vamos embora na sexta-feira... Sabe, moço, estive olhando as ondas que vêm e vão e me fiz uma promessa: um dia eu volto.

Uma pequena lágrima lhe escorreu na face. Mas logo tratou de enxugá-la. E meio que saindo do transe, espevitado, perguntou à Cirilo:

– E você, o que faz aqui todo dia?

– Faço companhia ao meu amigo. A solidão traz um gosto de vazio. Fiquei sozinho por muito tempo. Lembro que conheci uma moça. Bonita, faceira, tinha fogo nos olhos, jeito de guerreira. Eu trabalhava numa biblioteca. Ela era doméstica e eu a perdi. Não lembro por quê. Um dia me acidentei, acordei no hospital depois de semanas. Acho que estive em coma, foi o que disseram. Eu não tinha ninguém. Só me lembrava vagamente de onde morava e trabalhava. Lembranças completas, mesmo, só as bem antigas. Ah, que pena serem tão imprecisas as recordações de minha morena! Quando saí do hospital, fui demitido. Aí vim para cá e encontrei meu amigo. Fiquei com pena dele.

Cirilo sussurrou no ouvido do menino:

– Ele é caladão assim, mas sempre foi muito inteligente. Na minha opinião é um poeta... E você, sabe empinar pipa?

– Sei, mas não tenho nenhuma. – Não havia vestígio do ar sofrido, era apenas um menino.

– Amanhã vou trazer uma para empinarmos juntos.

No dia seguinte, Cirilo chegou com a pipa mais linda que o pequeno havia visto. Brincaram juntos toda a manhã. Mais um dia e Cirilo lhe trouxe uma bola, e brincaram na areia. Na sexta-feira, Cirilo lhe deu um livro de Monteiro Lobato. Disse a ele que guardasse muito bem os seus presentes. Era tudo do que precisaria para ser feliz: de alegria e sonhos.

O menino se foi. Viajou com a mãe, levando consigo seus tesouros. Nunca esqueceria Cirilo. Um dia haveria de contar dele para a mãe. Cirilo talvez esquecesse o menino. Tinha muito com o que se preocupar.

Calado e pensativo, Drummond era o único que sabia do segredo que nenhum dos dois fora capaz de descobrir.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Indicação de leitura: Oficina de escritores

Ainda vale ler cada novo manual para a arte da ficção? Acho que sim. Por mais que já tenhamos enraizado as regras do que se deve fazer, ou do que não se deve fazer num texto, é sempre bom ler que estamos no caminho certo, ou descobrir que ainda pecamos em algum lugar.

O livro Oficina de escritores: um manual para a arte de ficção de Stephen Koch é mais do que um manual, é um guia de incentivo, para quem sabe como dar vida a uma página em branco, ou para quem ainda precisa do parágrafo abaixo para começar:


“Não tenho dúvida de que chegará o dia em que você será mais inteligente, ou mais bem informado ou mais habilidoso do que é agora, mas nunca estará mais pronto para começar a escrever do que neste exato instante”.



Stephen lecionou por 21 anos em uma notável pós-graduação em escrita literária na School of Arts da Columbia University, além de sete anos a alunos de graduação da Princeton University, no programa de Redação Criativa.

Com a autoridade de quem trabalhou durante muito tempo com milhares de originais, Stephen não só oferece sua experiência, como concentra nas quase trezentas páginas do livro, instruções de consagrados escritores.

Abaixo, alguns trechos do livro que valem ser lidos e relidos, em qualquer momento dessa nossa difícil estrada da escrita.


Nos prefácios para a edição nova-iorquina de seus romances, Henry James relata de que maneira teve início cada um de seus clássicos: uma impressão súbita, algo “minúsculo, sobrado pelo vento... uma indicação solta, uma palavra ao acaso, um vago eco, ao toque dos quais a imaginação do romancista se sobressalta como se aguilhoada por um objeto pontudo... (Capítulo I. O começo)




Toda história é o que suas personagens fazem. Portanto, mostrar como as personagens são, qual é a sua aparência ou o que elas sentem tem importância secundária. É preciso mostrar como elas agem. (Capítulo I. O começo)




As personagens não agem sem uma motivação. (...) A motivação é o ponto de entrada de toda história. (Capítulo I. O começo)




Hemingway dizia que a única coisa que realmente importa no tocante à primeira versão é concluí-la. (Capítulo I. O começo. Regras para a primeira versão)




Um certo grau de talento ao começar é indispensável. (...) O que é talento literário? Uma fluência ágil. Um jeito com as palavras. Uma imaginação que se acende facilmente, sempre pronta a ver, ouvir ou sentir. Um ouvido para a música da linguagem, uma tendência para se deixar absorver nos misteriosos movimentos de seu significado e de sua sonoridade. Uma sensibilidade em relação ao público leitor. Habilidade para organizar conceitos verbais com coerência, eficácia e razoável rapidez. Aptidão para captar formas e figuras sutis da imaginação vívida e destreza para fixá-las na página. (Capítulo II. A vida de escritor)




As quatro disciplinas primordiais de qualquer escritor são: imaginação, observação, leitura e escrita. (Capítulo II. A vida de escritor)




Richard Bausch: Evite intelectualizar. Imaginar não é explicar as coisas, mas vê-las. (Capítulo II. A vida de escritor)




Quem não tem tempo para ler não tem tempo (nem ferramentas) para escrever. É simples assim. A leitura é o centro criativo da vida do escritor. (Capítulo II. A vida de escritor)




Para começar, só a leitura nos treina a usar corretamente as palavras. (...) Tenha sempre ao seu alcance na escrivaninha uma boa gramática, ao lado de um dicionário de primeira linha. Mas também se lê para ouvir a música da linguagem, tanto a culta quanto a popular. (...) Faça ainda uma dieta regular de poesia. (Capítulo II. A vida de escritor)




“Se você quer ser escritor”, diz Walter Mosley, “precisa escrever diariamente. A coerência, a uniformidade, a certeza, todos os caprichos e paixões se resolvem por meio dessa prática diária. (...) Mas há exceções. Se você tem emprego ou filhos, haverá muitos dias em que não conseguirá nem meia hora. “Não consigo escrever regularmente”, explica Toni Morrison. “Nunca consegui fazer isso ¬– principalmente porque sempre trabalhei fora o dia todo. Precisava escrever nos intervalos entre as horas de trabalho, às pressas, ou nos fins de semana e antes do amanhecer. (Capítulo II. A vida de escritor)




Encontre seu ritmo, qualquer que seja, aprenda a trabalhar em qualquer lugar e contorne todos os obstáculos. “Você poderá escrever sempre que estiver sozinho e não houver ninguém para interrompê-lo”, observou Hemingway. (...) Richard Bausch aconselha: “Treine-se para trabalhar em lugares movimentados, sob a massa de ruídos produzidos pelo mundo – trabalhe com crianças brincando ao redor, com música tocando, ou mesmo com a televisão ligada” (Capítulo II. A vida de escritor)




Vamos falar a verdade: mesmo que você seja muito bem-sucedido, será difícil ter uma renda decente apenas escrevendo. Então, faça as pazes com a necessidade de ganhar a vida de outra maneira – e tire o melhor proveito disso. (Capítulo II. A vida de escritor)



A vontade é continuar relatando todo o livro. Da próxima vez, citarei trechos dos outros capítulos.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Alguns aspectos do conto com Lívia Garcia-Roza

Teve início hoje o curso intensivo, praticamente um Workshop, "Alguns aspectos do conto", com a escritora Lívia Garcia-Roza. Para quem não teve contato com a obra da autora, indico os que li: Restou o cão e A cara da mãe, esse último indicado ao Prêmio Portugal Telecom.

Resultado do primeiro dia de curso: puro êxtase. Ela é fantástica!

O curso está acontecendo na Estação das Letras, de 17h às 19h, de hoje até sexta.

domingo, 6 de julho de 2008

Encerramento da Flip

A FLIP acabou e como eu previ, não foi possível acompanhar mais nenhuma mesa. Coisas do ofício de mãe!

Para amenizar a sensação do “já acabou”, dei uma geral pelos blogs e jornais, buscando o que rolou no último dia.

Os livros não-lidos favoritos dos autores
Por Miguel Conde
(Fonte: Jornal O Globo – 06/07/2008)


Parte da matéria publicada no Jornal O Globo de hoje, como
prévia da mesa 16 “Os livros que não lemos”, com Marcelo Coelho e Pierre Bayard.


Alguém já disse que os grandes autores são, em primeiro lugar, grandes leitores. Mas isso não quer dizer que eles sejam mais confiáveis do que outras pessoas quando questionados sobre seus conhecimentos de literatura. Afinal, grandes autores também têm muita imaginação, e talento para fazer os outros acreditarem nas histórias que eles criam. Antecipando-se à conversa de hoje às 10h entre o brasileiro Marcelo Coelho e o crítico francês Pierre Bayard, autor de “Como falar dos livros que não lemos” (Objetiva), O GLOBO perguntou a escritores presentes na Flip qual era o livro não-lido preferido de cada um. Sem constrangimento, eles confessaram lacunas importantes em suas listas de leituras, e se admitiram adeptos da tese bayardiana de que ninguém precisa ler um livro para comentá-lo com autoridade, mesmo nas rodinhas de conversa mais cabeçudas.

Embora alguns manifestassem a intenção de remediar em algum momento as “falhas” em sua formação literária, outros pareciam mais resignados. Foi o caso do americano Nathan Englander, autor de “Ministério dos casos especiais” (Record), que depois de algumas tentativas se conformou em simplesmente admirar à distância um dos mais importantes livros do século XX, “A montanha mágica”, de Thomas Mann.

- Eu sempre começo, subo a montanha, subo a montanha, e paro... Devo ter lido as primeiras cem páginas umas quatro vezes. É ótimo, será sempre o meu não-lido preferido – brincou.

A obra-prima de Mann levou também o voto do brasileiro Luís Fernando Veríssimo, que ainda se atreveu, no espírito da enquete, a fazer algumas ressalvas ponderadas ao romance:

- A gente acaba conhecendo alguns livros de orelha, né? Tenho impressão de que “A montanha mágica” é um livro bom. Talvez um pouco datado, mas muito bom. E ainda pretendo ler um dia – jurou o humorista.

(...)

Sentada numa mesa de bar na Praça da Matriz, a simpática portuguesa Inês Pedrosa foi a que precisou de mais tempo para responder. Tomou uns goles de caipirinha, meditativa, e resolveu-se enfim por “Anna Karenina”, de Tolstoi. Animada, aproveitou ainda para sugerir que a impostura é um hábito generalizado no meio literário.

- Os escritores portugueses, quando são entrevistados, sempre dizem estar a reler as obras completas de Tolstoi. Não sei onde eles conseguem tanto tempo! Eu ainda estou por lê-las pela primeira vez. Mas eu gosto muito de “Guerra e paz”, e, por tudo que sei de “Anna Karenina”, este é o meu preferido – disse a autora de “A eternidade e o desejo” (Alfaguara).

Confirmando a tese de Inês (e endossando a de Bayard), o crítico e romancista argentino Martín Kohan, autor de “Ciências morais” (Companhia das Letras), confessou mentir rotineiramente em conversas sobre literatura.

- Li apenas os dois primeiros volumes de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, mas falo como se tivesse lido todos. Quando alguém menciona o último volume, “O tempo redescoberto”, sou sempre muito enfático. Digo sim, sim, claro, concordo com tudo... Mas dos sete li apenas dois.

O que no caso dessa reportagem, note-se, já é muito. Basta ver o caso de João Gilberto Noll, autor de “Acenos e afagos” (Record), que nunca leu nada do seu escolhido, “Moby Dick”, de Herman Melville.

- Mas sei tudo sobre o livro – garante.

O humorista americano David Sedaris, que acaba de ter seu livro “Eu falar bonito um dia” (Companhia das Letras) lançado no Brasil, não elegeu um livro em particular, mas concordou em dar algumas dicas para os aspirantes à condição de sabe-tudo nos papos literários:

- É sempre mais fácil falar de livros de pessoas que já morreram – aconselhou. – É fácil dizer por aí que eu já li o Cervantes. Eu posso contar que li o Cervantes na escola que as pessoas vão acreditar.

O americano sugeriu ainda que, para fazer boa figura num encontro com autores contemporâneos, ninguém precisa ter lido o livro deles.

(...)

Livros lidos na última mesa de hoje “Livro de cabeceira”
(Fonte: blog Prosa on-line – www.oglobo.com.br/blogs/prosa)

Cees Nooteboom – leu as últimas páginas de “O tempo redescoberto”, sétimo volume de “Em busca do tempo perdido”, de Proust.

Alessandro Baricco – leu a última página de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger.

Neil Gaiman – leu as primeiras páginas do livro “13 clocks”, de James Thurber.

Tom Stoppard – leu três vinhetas de Ernest Hemingway, do livro “In our time”.

Zöe Heller – leu um trecho de “The member of the wedding”, de Carson McCullers.

Cíntia Moscovich – leu um trecho de “De amor e trevas”, do israelense Amos Oz.

Chimamanda Adichie – leu um trecho de “The autobiography of my mother”, de Jamaica Kincaid.

Nathan Englander – leu parte do conto “Goodbye, my brother”, de John Cheever.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Flip - mesa 5 - "Sexo, mentiras e videotape"

Depois de brigar muito com minha banda larga, que deve ter feito um baita regime, consegui chegar (virtualmente) na última frase da leitura feita por Cíntia Moscovich, do seu livro “Por que sou gorda, mamãe?”. E assim começou (pelo menos para mim), a mesa "Sexo, mentiras e videotape", com a participação da própria Cíntia e de Zoë Heller e Inês Pedrosa, moderada por José Luis Peixoto.

Em seguida, a inglesa Zoë Heller leu um trecho do seu livro, “Anotações sobre um escândalo”, no qual a narradora Barbara discute com Sheba, a protagonista.

Por último, Inês Pedrosa leu um capítulo, no qual Clara, a protagonista de seu livro “A eternidade e o desejo”, escreve uma carta para o amigo Sebastião (que está no Maranhão), com quem havia retornado ao Brasil, para pesquisar sobre o Padre Antônio Vieira.

Seguindo o tema da mesa, José Luis dá início ao questionamento sobre o tema sexo, dentro do contexto da literatura feminina.

Zoe disse que não há passagens sobre sexo em seu livro. Um dos maiores interesses está na diferença de tratamento com mulheres e homens, quando do mesmo ato. Quando mulheres têm um caso com rapazes de 14 anos, isso faz parte da idéia do não-sadio, enquanto que se são os homens que cometem essas violações, os mesmos são tratados como predadores.

Inês respondeu ao questionamento sobre o fato de não se ter muita descrição do ato sexual em Portugal. Ela demonstra com alguns exemplos bem divertidos que é tão fácil falar de sexo, que nada se fala. Tudo é por meio de metáforas, por exemplo: cetros, mastros e velas. A descrição muito crua é muito criticada em Portugal. Lembrou que a ditadura de Portugal censurava mais a sexualidade do que a política.

Cíntia contou que seu livro foi escrito numa influência de “Carta ao pai” de Kafka. Falou em detalhes sobre o processo de escrita, no qual se deparou com a mãe gigantesca que estava escrevendo. Em outro momento, afirmou ainda que não temos que nos afastar do que conhecemos para escrever. Diz que somos um abismo, um buraco negro, e o conhecimento desse abismo nós dá elementos para a literatura. “Uma coisa que eu descobri: as pessoas se parecem muito umas com as outras. (...) As grandes tragédias pessoais não são exclusivamente nossas ”, afirma Cíntia, acrescentando ainda que temos que usar esse acervo de afeto e de memória para escrever.

Inês foi taxativa em dizer que literatura feminina não existe. Literatura divide-se em boa e má, que é estúpido criar guetos em qualquer área, e que qualquer separação é ruim. Afirma “nunca andamos a contabilizar quantos homens e quantas mulheres havia em Guerra e Paz”. Contou um episódio muito engraçado sobre a época em que era editora da revista Marie Claire. Ela estabeleceu algumas regras, entre elas, o de ser proibido perguntar a uma mulher “como se concilia uma carreira e os filhos”, mas a um homem não havia problemas. E foi o que ela fez, a um candidato à presidência. Foi hilariante o seu relato sobre a reação do entrevistado.

De passagens hilariantes a troças sobre o tema sexo, a mesa encerrou com as escritoras falando sobre a capacidade que os escritores têm de captar a sensibilidade das coisas, um estado de espírito, que não é comum se perceber no dia a dia.

Por hoje é só. Apesar de ter anotado muito mais sobre essa mesa, maravilhosa cabe ressaltar, não tive tempo de escrever mais do que expus acima. Bem, não terei disponibilidade para relatar os próximos debates (talvez volte no último de domingo), mas espero que vocês curtam a Flip, de perto ou de longe.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Flip - mesa 2 - "O espelho"

É, não deu! Minha conexão me deixou na mão, ou não terá sido ela? Bem, só sei que não consegui acompanhar a segunda mesa, com Elisabeth Roudinesco. Numa transmissão picotada, na qual eu captava uma ou outra palavra, enquanto meu note tentava se conectar novamente, consegui ouvir apenas uma única frase, que não cheguei a anotar, mas transcrevo o que ficou em minha memória: o pintor, ao se deparar com o resultado da obra, a achou terrível. E atirou na tela.

Claro que por trás dessa frase, muito se tem para interpretar, mas vamos confessar: daria um bom conto!

Flip – mesa “Primeiro Tempo”

Não devemos agradecer ficar de molho por causa de uma gripe. Mas essa que me derrubou ontem, e me fez ficar em casa, trouxe uma vantagem: poder acompanhar as primeiras mesas da Flip.

A primeira mesa dessa quinta-feira - Primeiro Tempo - foi com os escritores Adriana Lunardi, Emilio Fraia, Michel Laub e Vanessa Barbara.

Mediada por João Moreira Salles, editor da Revista Piauí, a mesma teve início com a apresentação dos escritores, e a leitura pelos próprios, de trechos de suas autorias.

Vanessa Barbara, nasceu em São Paulo. É responsável pelo almanaque virtual Hortaliça, e colaboradora da revista Piauí. Publicou dois livros: "O Livro Amarelo do Terminal" (Cosac Naify), um livro-reportagem, originado na monografia de conclusão do curso de Jornalismo, e "O verão de Chibo" (Objetiva), escrito a quatro mãos com Emilio Fraia.

Emilio Fraia, também de São Paulo e colaborador da Piauí, publicou "O verão de Chibo".

Michel Laub nasceu em Porto Alegre, é jornalista e publicou três romances.

Adriana Lunardi, nasceu em Santa Catarina, publicou três livros, o último, o romance Corpo Estranho.

Vanessa leu um capítulo que fala do balcão de informações, no seu primeiro livro, enquanto Emilio leu o capítulo 3 do livro escrito pelos dois. Michel e Adriana leram contos. O dele, inédito, é o primeiro com voz feminina (O homem da praia). O dela foi publicado nesse mês na revista Piauí (Contra a parede).

Após a leitura feita por cada escritor, João falou do impacto que sentiu ao ler o livro de cada autor, e comentou sobre sua impressão a respeito da velocidade da narrativa.

João cita que nos livros da Adriana há uma dilatação do tempo interior, uma expansão dos instantes da consciência. E que a descrição desses intervalos traz uma literatura lenta, no melhor sentido da palavra. Identificou também o universo feminino presente em sua literatura. Cita seu livro de contos (Vésperas) que descreve a história dos instantes que precedem a morte de algumas escritoras. Cada conto se dedica a uma escritora.

Para João, no caso de Michel, existe o universo masculino. Em seus livros, as construções formais são extremamente elegantes. São livros que geralmente lidam com a transição da vida adolescente para a vida adulta, e com as relações familiares. Ressalta, ainda, que há tempos largos da consciência, uma certa urgência no mundo que impacta a velocidade da narrativa. Diz que há acelerações e desacelerações nos livros dele, que resultam numa velocidade moderada.

Nos textos de Vanessa, João identifica o humor, o non-sense, e percebe uma clara aceleração da narrativa.

No caso do livro de Emilio, feito em parceria com Vanessa, percebe um pouco de Lewis Carroll, de uma literatura que se alimenta de tudo.

João lembra que nenhum dos presentes é escritor em tempo integral. Adriana trabalha em televisão, os outros são repórteres, jornalistas.

A partir daí, João pergunta se eles imaginam um dia ter a vida ideal de um escritor que se dedica em tempo exclusivo a essa atividade? Ou se a atividade paralela fertiliza o material que eles escrevem?

Michel diz que até chegou a planejar, mas hoje percebe que é difícil viver só de ficção, e tenta encontrar os fatores positivos nisso. Ao longo dos anos, percebeu que é interessante ter uma outra fonte de renda, para que a literatura assuma o espaço dela – o de liberdade. Com isso, ele escreve sem ter o compromisso com as vendas. Só dessa maneira ele vê que a Literatura pode ser boa.

Emilio disse já ter sofrido com essas diferenças, mas também percebeu que as atividades se completavam, e busca ter o mesmo prazer ao fazer uma reportagem, ou quando escreve, ou quando revisa.

Vanessa concordou com Emilio e citou Borges e Bioy que começaram escrevendo juntos, uma campanha publicitária para um iogurte, no qual criaram uma família búlgara, na qual a filha mais nova tinha 93 anos.

Adriana afirmou que se sente escritora o tempo todo. E dessa forma, vê como inevitável tirar seu sustento de seu trabalho como roteirista. Ela entende que suas atividades se comunicam, mantendo a diferença que os roteiros que escreve estão mais ligados a documentários, a algo que tenta recortar uma realidade sem que sua opinião interfira em demasiado sobre aquilo. Enquanto que para escrever, pequenos gestos acabam voltando para a linguagem. Uma frase sua muito marcante: “escrever é tão necessário, que não saberia fazer de outro jeito”.

João questionou ao Emilio e à Vanessa sobre como é escrever a quatro mãos.

Eles explicaram que tudo começou como uma brincadeira. Eles já haviam escrito um conto juntos. Para a idéia do livro, um escrevia um trecho e passava para o outro, que acrescentava ou mexia no trecho anterior. Procuraram deixar o texto o mais uniforme possível, buscando apagar os limites do que era de um ou de outro.

João questionou se os escritores têm um rigor para escrever, uma disciplina.

Adriana afirmou que sempre está se relacionando com suas obras, a que recém-acabou ou a que vai ser escrita. Está sempre pensando no que foi feito, no que vem depois, deixando que as idéias apareçam para um próximo livro. Quanto ao processo de escrita, normalmente nos dois primeiros meses de um livro, ela se tranca em casa, pára de fazer qualquer atividade profissional que tenha, elimina a vida social. Depois de um ano, ela volta a se entender com o mundo.

Michel disse nunca ter tido um método regular. Sempre escreveu no tempo livre. Às vezes ficava uma semana ou 10 dias sem pegar no livro. Isso o fez criar um método para concentrar nessas duas horas, uma narrativa intensa. Hoje seus capítulos são curtos, talvez gerado por esse método.

Vanessa e Emilio disseram não ter um método de disciplina para escrever. Tentam se dedicar todos os dias.

Do público, veio a pergunta para Adriana, questionando o porquê de se escrever um livro sobre a morte de escritoras?
Adriana respondeu que o livro não é sobre a morte, e sim uma reflexão sobre a finitude. Ela tentou falar sobre momentos cruciais na vida de autoras que tinham-na influenciado, não só pelo que escreveram, mas pelo que viviam e pensavam. A partir da relação dela com essas autoras, buscou concentrar o momento em que as coisas parecem sem saída.

A idéia surgiu após Adriana ler a biografia de Zelda Fitzgerald, e descobrir que ela vivera numa época, na qual sua geração corria todos os riscos, e ao ser internada num sanatório, houve um incêndio e nenhum dos pacientes se salvou, pois as grades do prédio eram irremovíveis. Todos acabaram morrendo por excesso de segurança. Chamou sua atenção, a morte de Zelda contradizer completamente todos os riscos que ela havia corrido durante a vida.

João finalizou a mesa questionando que segredos de escritor eles poderiam revelar.

Michel falou sobre o que todo escritor diz, e as pessoas não acreditam, que escrever não é uma atividade prazerosa. Ele não tinha essa noção antes de começar a escrever. O prazer vem somente depois do livro pronto.

Após uma pergunta de João, Adriana ainda falou que para ela, uma personagem se torna uma presença e companhia constantes. Lembrou que certa vez, seu plano era matar uma das personagens de seu livro, e em certo momento, não pôde, pois isso se tornaria uma punição.

Ufa! Consegui terminar o relato dessa mesa, antes da próxima. Boa FLIP, para quem está lá, e para quem está aqui no sofá da sala, só curtindo com fone de ouvidos.

Flip - abertura - Roberto Schwarz homenageia Machado

Acabou há pouco mais de uma hora a conferência "A poesia envenenada de Dom Casmurro", de Roberto Schwarz, em homenagem à Machado de Assis. Não estive na tenda, mas curti o prazer de acompanhar, entre uma ou outra perda de conexão, via transmissão ao vivo pela Internet (http://flip.oi.com.br).

Apresentado por Hélio Guimarães, Schwarz começa sua palestra afirmando que os capítulos de abertura dos romances de Machado de Assis são obras-primas.

Leu o primeiro capítulo de Dom Casmurro, que explica a origem do título. Após leitura, ele analisa e conclui que esse título é o resultado de um processo em várias etapas, trazendo uma visão conciliadora.

Nesse processo, está o poeta do trem que incomodou o cavalheiro reservado - Dom Casmurro. No final do capítulo, o trecho "o meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua", revela um narrador que não viu problema em tomar emprestado um título, mas que logo em seguida prevê que podem querer lhe tomar a obra.

Na última frase "Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto", afirma Roberto, se substituirmos a palavra "livro" por "filho", a temperatura sobe consideravelmente, concluindo que alguns filhos só terão o nome de seus autores (pais), enquanto outros nem isso, uma referência a toda a dúvida que permeia a segunda parte da obra.

Em seguida, Roberto passou a citar as diversas leituras que a obra de Machado de Assis teve nos últimos 100 anos.

O livro solicita três leituras sucessivas e distintas: a primeira romanesca; uma outra, patriarcal, que trata do adultério; e a terceira, que mostra o narrador que tenta convencer a si e ao leitor da traição da mulher.

Na interpretação de Alfredo Pujol, há uma cegueira do crítico, dando apoio ao preconceito patriarcal e de classe, consolidado no plano literário. Por que se poria em dúvida o narrador do romance?

A mudança de enfoque na leitura de Machado começa a mudar na década de 60. Helen Caldwell, apresenta um trabalho que trata o "Otelo brasileiro de Machado" (The Brazilian Othello of Machado de Assis, a Study of Dom Casmurro), mostrando que o romancista havia inventado uma situação narrativa da mais surpreendente, como o de fazer Otelo narrar os pecados de Desdêmona. Ao mostrar que Machado inventa um narrador sem credibilidade, o autor toma a contramão da história do romance, indo contra o domínio patriarcal.

Roberto cita que a virada é considerável. Lembra a própria passagem do livro, quando Bentinho cheio de desconfianças, decide relaxar indo ao teatro, e assistindo nada menos que Otelo. E ao sair, conclui que se Desdêmona era inocente e teve um apoio do público, o que faria se fosse culpada como Capitu.

Na seqüência, Roberto apresenta a visão dos trabalhos de Silviano Santiago e John Gledson.

Como conclusão, temos hoje uma visão diferente da leitura de Dom Casmurro, na qual, se vê o problema do paternalismo no mundo moderno. Machado teve a audácia de transformar um tipo ideal da elite brasileira, em um problema, senão em um vilão, ao mesmo tempo que fazia dele um narrador. É como se num romance policial, o detetive fosse o assassino, exemplifica Roberto.

A obra de Machado levou 50 anos sendo lida como conservadora, do ponto de vista apenas do adultério de Capitu (assim condenada também pela crítica), até que a charada foi descoberta, e o ponto de vista mudou para o ciúme de Bentinho e a manipulação deste para convencer a todos que seus motivos eram justificados.

Após aplausos calorosos e merecidos pela conferência apresentada por Roberto, Hélio Guimarães, encaminhou um comentário próprio e as perguntas da platéia.

Hélio cita o primeiro romance de Machado de Assis, no qual também existe um personagem, Felix, extremamente atormentado pelo ciúme. Roberto explica que no primeiro romance de Machado, o ciúme é tratado como movimento psicológico, enquanto que em Dom Casmurro, há uma superposição da questão do ciúme, com a autoridade patriarcal, e o relacionamento do proprietário com o agregado.

Roberto cita que os primeiros quatro romances de Machado eram fracos, e que a partir do quinto, tornam-se geniais. Nesses primeiros, há sempre uma mocinha pobre, bonita e inteligente, que procura se engraçar de uma família rica, para usufruir dos benefícios dessa relação de proprietário e agregado.

Naquela época, de uma sociedade escravista, os brancos pobres não tinham como ganhar a vida, pois o trabalho era feito pelos escravos.

Para sobreviver, havia apenas um jeito: buscar o favorecimento de um proprietário - tornando-se agregados. Machado escreveu seus primeiros romances sobre essa relação, com simpatia pelos que estão debaixo, na situação dura de agregado, buscando defender uma civilidade dos proprietários e patrões.

Em 1880, oito anos antes da abolição, Machado escreve um livro completamente diferente dos anteriores, tomando um ponto de vista de cima, da maneira mais escrachada possível, expondo todos os malfeitos da relação patriarcal. Escreve em primeira pessoa, como se fosse em terceira.

Ele mostra nessa voz todo o mal que o autor enxerga na personagem. Machado foi cético em relação à abolição. Concluiu que os proprietários não iriam se civilizar depois da abolição. Roberto apresenta que essa é a grande virada da obra de Machado de Assis. Um lance de genialidade de Machado, mostrar o avesso do modelo ideal da sociedade da época.

Foi uma atitude arriscada que se pagou com 50 anos de uma leitura convencional. No princípio, Machado era um ídolo do confirmismo, tanto é que ele não era apreciado pela esquerda. Os leitores se identificavam com Machado, por quererem ser finos e elegantes como seus personagens, sem perceber o que de ruim estava por baixo deles. A releitura de Machado teve início na virada do sentimento político, a partir de 64.

Uma pergunta do público pede a interpretação de Roberto sobre a última frase do romance: "Vamos à História dos Subúrbios". Há um caráter enganoso no narrador, que tenta mostrar que a história de Capitu é menor, apenas um treino, para a história que seria mais importante, a dos subúrbios.

Outra pergunta pede a importância de José de Alencar na obra machadiana.

Roberto explica que a relação pública e explícita é de veneração. Contudo, mostra que Machado em alguns momentos, passa a limpo a prosa de José de Alencar. Em Lucíola, romance de Alencar, a personagem principal é uma prostituta virtuosa, que usa seu ofício para arranjar o dinheiro necessário ao sustento do irmão. Há uma famosa cena em que ela faz poses com roupas diversas, numa farra de subúrbio. O Machado, em Memórias Póstumas, usa a
personagem de Marcela, fazendo-a ser realmente do ramo, com a mesma cena de poses. Machado reescreveu a cena de Lucíola, sem o romantismo de Alencar.

Um outro caso, é o romance "A pata da gazela" de Alencar, no qual há um equívoco com uma moça que tem um defeito na perna. Em Memórias Póstumas, há uma moça coxa, que acaba da pior forma possível.

Como finalização, Roberto volta a falar da figura de Capitu, descrita no romance como irracional, mas que na realidade é a encarnação da razão, o que não era tolerado pelos proprietários paternalistas - o juízo próprio, o pobre de cabeça erguida.

Uma estréia magnífica. Esperamos ansiosos o resultado dos próximos dias da Flip.

Amanhã, às 10h, haverá a mesa "Primeiro Tempo", com Adriana Lunardi, Emilio Fraia, Michel Laub e Vanessa Bárbara, mediada por João Moreira Salles.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Flip - transmissão ao vivo

Está chegando. Amanhã tem início a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A novidade é que esse ano a festa vai ser para todos, mesmo que não estejamos presentes. A Oi, uma das patrocinadoras da Flip, vai transmitir ao vivo as mesas do evento. O endereço para acompanhar é: http://www.oi.com.br/flip, e para não perder nada, basta conferir a programação atualizada em http://www.flip.org.br/.

O site oferecerá ainda entrevistas com os autores, personalidades e visitantes ilustres, realizadas durante a cobertura da feira.

A Flip irá até domingo, dia 6 de julho, no Centro Histórico de Paraty.

(Fonte: PublishNews - 01/07/2008)

Centenário de Guimarães Rosa

"-Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo.

-Por quê, papai?

-Para a pessoa se interessar e ler inteirinho. Agora, me descreva o que você está vendo.

-Uma moça alegre e bondosa, papai.

-Nada disso, Vilminha. É uma moça de vestido amarelo.

Se ela é alegre e bondosa, você vai falar depois. Na primeira vez que você descreve alguém num conto, diga só o que você vê. Entendeu, Vilminha?

Mas nada disso vale fala, porque a estória de um escritor, como a história de um burrinho pedrês, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de João Guimarães Rosa foi toda comemorada em algumas horas - nove da manhã às nove da noite - no dia 27 de junho de 2008, que o autor nasceu em dia igual de 1908, na pequena Cordisburgo, perto da gruta do Maquiné, no centro de Minas Gerais. E na comemoração de seus cem anos serão lançados 15 livros, sendo que dois já o foram na sexta-feira passada, em Cordisburgo, a uma hora de distância de Belo Horizonte."

(Fonte: Publish News - matéria da Folha de São Paulo - 01/07/2008, por Ivan Finotti)