sábado, 6 de junho de 2009

Entrevista com António Lobo Antunes

Ontem, no Segundo Caderno do Jornal O Globo, saiu uma entrevista com o escritor português António Lobo Antunes, que estará na Flip mês que vem.

Ele tem fama de ser avesso a entrevistas, mas até que abriu uma boa exceção à Suzana Velasco. E o texto ficou muito bom. Eu vi o anúncio da entrevista na quinta-feira e logo tratei de comprar o jornal no dia seguinte.

E como o Globo online só disponibilizou um pedacinho, fiz a digitação do texto completo e ofereço aqui para vocês. Os grifos em azul são meus. Aproveitem!


No Brasil, serão lançados em breve dois livros seus: "Explicação dos pássaros", de 1981, e "O meu nome é Legião", de 2007. Sua relação com a literatura mudou muito de lá para cá?
Lobo Antunes: O que eu acho que deve ser um livro foi mudando com o tempo. Antes estava interessado na história, agora a história não me interessa absolutamente nada. Não vejo os personagens fisicamente, não imagino como eles são. Meus livros são vozes, sobretudo os últimos, são muito simbólicos, não tendem para um fim definido. Não me interessava mais fazer romances, mas pôr a vida inteira entre as capas de um livro.

Em "Explicação dos pássaros" já há um afastamento dos temas autobiográficos dos primeiros romances, que tratavam da experiência na guerra. Foi importante se distanciar da sua história para escrever?
Lobo Antunes: Autobiografia é inevitável. Você não inventa nada, vai trabalhando com memórias, acaba a parecer um mendigo que anda procurando restos no lixo. Uma grande parte não me é consciente. Um livro não se faz com ideias, se faz com palavras. Então fico sentado a esperar que as palavras venham. Quando comecei, fazia planos muito detalhados. Depois compreendi que um livro é um organismo vivo, tem sua própria fisionomia, seu próprio temperamento. Você não faz mais do que seguir o que o livro quer. O princípio é muito difícil, a distância tão grande entre a intensidade das emoções e o que está no papel... Todo o trabalho é aproximar essas duas coisas. E isso só se consegue corrigindo e corrigindo e corrigindo.

A impotência diante da vida aparece em seus romances, e também em "O meu nome é Legião".
Lobo Antunes: Aquilo era quase um livro sobre como escrever um livro. O policial era o escritor que estava lutando com o material, e o material eram os meninos da rua, que têm uma sede imensa de ternura, mas que, por razões várias, culturais, sociais, a única maneira que têm de exprimir suas emoções é através da violência. Mas eu não acho que eles sejam violentos, acho que eles estão cheios de ternura. Eu gostei deles.

O livro trata da criminalidade entre jovens descendentes de africanos na periferia de Lisboa. A História de Portugal volta com força, mas é um Portugal contemporâneo, lidando com o racismo contra os imigrantes. O senhor vê isso como um problema da Europa hoje?
Lobo Antunes: Não pensei nisso porque não sei o que é Europa. Você, para escrever, tem que criar um território ficcional. Chicago do Hemingway não existe, Minas do Drummond não existe. Por comodidade, pode se chamar Portugal ou Lisboa, mas isso para mim não é relevante. Nunca tive sentimento de nacionalidade, porque sou mestiço. Fui educado em Portugal à maneira do Norte do Brasil (o avô nasceu no Pará). Além disso, pensava que toda a gente tinha olhos azuis (risos). Pensava que só as empregadas tinham olhos castanhos. Foi uma educação um pouco sui generis. Mas sentimento de pertença a um país, a um continente, isso eu nunca tive. Quando era menino, as canções que meu avô cantava eram as da Guerra do Paraguai. Eu não sei o que é Europa, tampouco sei o que é Portugal. Vivo em Lisboa porque gosto da luz, e porque no Rio é impossível escrever, você fica olhando o tempo inteiro.

O senhor começou a escrever quando era menino?
Lobo Antunes: Minha mãe tinha me ensinado a ler. Com 4 anos, tive uma tuberculose e tinha que ficar numa cama. Comecei a escrever, e fazia sentido. Por volta dos 14 anos, você começa a entender que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal, então começa a angústia. Depois, por volta dos 17, 18 anos, você entende que há uma diferença ainda maior entre escrever bem e obra-prima, e aí a angústia é total.

E o objetivo é sempre escrever obras-primas?
Lobo Antunes: Se você não escreve para ser o melhor, não vale a pena. Você tem que escrever contra os escritores de que gosta, tem que ser melhor que eles.

O senhor vem em julho para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Qual é a sua aproximação com a literatura brasileira?
Lobo Antunes: Também não sei o que é Brasil. Acho que o que o Brasil deu de mais importante no século XX foram os poetas. Cabral (João Cabral de Melo Neto) é um dos mais altos poetas não só da literatura (em língua) portuguesa, mas de toda a literatura. Poetas como Drummond e outros que estão esquecidos, como Paulo Mendes Campos, Mario Quintana, Cassiano Ricardo.

A Flip vai homenagear Manuel Bandeira este ano.
Lobo Antunes: Manuel Bandeira foi muito bom para mim quando tinha 13 anos, fiquei encantado. Meu pai lia para nós.

Mesmo escrevendo desde pequeno, o senhor só começou a publicar aos 37 anos. Por quê?
Lobo Antunes: O que eu fazia era uma merda. Tive uma infância muito protegida, não sabia nada da vida. Sou o filho mais velho dos filhos mais velhos, um morgado, como se diz em Belém. Quando nasci, meus avós tinham 40 anos, a morte não existia. Minha família vivia bem da borracha do Brasil, até a altura em que a borracha da Cingapura deu cabo das grandes fortunas da Amazônia. Meu bisavô, cuja mulher se chamava evidentemente Leopoldina, vinha todos os anos de Belém, e uma vez deixou meu avô aqui num colégio militar. O resto dos filhos depois se mudou para o Rio. Minha família agora está toda no Rio.

Ter ido para a guerra foi importante para sair dessa proteção?
Lobo Antunes: Para a minha família era muito estranho, né? Quando tinha 13 anos, meu avô, que se chamava António Lobo Antunes, me chamou no escritório, era um homem enorme, pesava 100kg, olhou para mim com um ar muito severo e me perguntou se eu era veado. Eu escrevia, e escritor para ele era bicha. Eu não sabia o que era veado, mas pela cara dele disse "Não, não, não". Depois fui me informar e ainda fiquei mais perplexo, porque eram pessoas que faziam coisas que eu achava muito esquisitas.

E por que estudou psiquiatria?
Lobo Antunes: Minha família é de médicos, então, com 16 anos, entrei para a faculdade de Medicina. Depois da guerra, precisava de uma especialização, nunca pensei que poderia viver de escrever. Pensei que psiquiatria poderia ser interessante.

E foi?
Lobo Antunes: Era como estar num sítio parecido ao mesmo tempo com um filme do Fellini e com a casa dos meus avós. Quando pude, larguei. Para mim era estranho que houvesse pessoas que dissessem o que era normal e o que não era normal. O poder médico me assustava. Se você está contente, dizem que está maníaco e lhe dão um remédio.

Na Flip, o senhor falará numa mesa chamada "Escrever é preciso". Faz sentido esse título?
Lobo Antunes: Eu não sei se vou falar. Eles queriam me mandar o programa, e eu disse: "Não me mandem o programa que eu gosto de surpresas". Eu falo pouco, aliás. E não sei quem estará na mesa.

O senhor será a única atração.
Lobo Antunes: Eu sozinho? Então eu me sento embaixo da mesa.

O que o senhor acha da reforma ortográfica da língua portuguesa?
Lobo Antunes: Meu português sei lá se é de Portugal. É um português que eu inventei. Vou continuar a escrever da mesma maneira.

Mas é verdade que vai parar de escrever depois do próximo livro?
Lobo Antunes: Não sei. O mundo sem mim deve ficar tão triste, né? (risos).

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