domingo, 26 de julho de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#4b) - 25/07/2009

Então, vamos à segunda parte da matéria do Caderno Prosa & Verso de ontem, em que editor e escritor dão as suas opiniões sobre a relação de ambos.

Com a palavra o Escritor.

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A última rejeição
O Escritor

Querido Editor,

Se você soubesse o quanto esperamos o encontro contigo. Amor verdadeiro, ódio platônico. Foram concursos literários, encadernações intermináveis, oficinas, leituras nos almoços e jantares. Sim, escritor também toca música de fundo para os familiares. É literatura de fundo enquanto os parentes conversam e picotam a carne. Nossa primeira rejeição é familiar. A segunda também: quando irmãos nem abrem as nossas estreias, põem direto na estante. Se brigam com a gente, vendem ao sebo sem piedade.

Você será a nossa última rejeição. Infelizmente, não é o primeiro, reduza seu sadismo. Tivemos outras antes.

Não vou apressar, o GLOBO me deu tempo para digitar a sós contigo, meu Nosferatu, meu Hermógenes, meu Mefistófeles do bem.

Madrugadas insones com café, guaraná cerebral, cobertor nos ombros, um bando de clichês no cinzeiro, para que pudesse um dia ler o nosso original por vinte minutos. Literatura é um vestibular que não tem lista de classificados no jornal. Nem se suplentes. Talvez seja por isso que Drummond disse que “os acontecimentos me chateiam”.

Para quem demora quinze anos com um original na gaveta do Windows, dói inclusive folhear o Segundo Caderno e o Prosa & Verso. Tanta gente festejada, comentada, avacalhada e a gente obrigada a seguir com o emprego. A inveja não tem jardim de infância. Nascemos e já vale nota. Mais não digo, confesso.

Frequentar lançamentos para ver como é, não entendo como não morremos intoxicados com os canapés e os vinhos oferecidos em vernissages. Primeiro requisito do escritor: ter estômago forte.

Manhãs atormentadas em que relemos o que escrevemos na noite anterior. Se o café esfria rápido, o texto congela. Rasgamos folhas orgulhosas, que julgávamos geniais. Gastamos as digitais revisando as palavras. Imprimir e rasgar, imprimir e rasgar, conheço o barulho da impressora como o motor de meu carro 1993.

Ave César, se soubesse o que enfrentamos para achar seu contato. No Google. Nas páginas amarelas. Nas fichas catalográficas. Nas cartas de Tarô. Conversando com as telefonistas da empresa. Já conheci escritor que de tão recusado casou com a telefonista da editora. Sem sequer receber uma dica, um sinal, bênção de dedos de mãe Sinhá na testa. Uma reza a Santo Expedito. Tudo sozinho, arame farpado nas unhas, com medo de mostrar o livro e com medo de não mostrar o livro.

O escritor tem tudo para ser um coitado e não é. Tem tudo para ser um paranoico e não é. Somos normais para quem experimenta uma vida invisível, de pequenas privações e conspirações. Uma vida sem porteiro. Tem que bater na nossa porta. Tento explicar. Porque você tem tanta coisa para fazer em seu lado, que não sobra tempo para explorar o nosso. O editor não precisa morrer para visitar o escritor. Basta ler o nosso epitáfio.

Compreenda, não queremos carona, queremos direção. Pode deixar de cobrar corrida dois na luz da tarde? O tempo não é dinheiro, o tempo é direito autoral. Não me trate como mais um, somos particulares até em nossas falhas. Enquanto procura sucesso, procuramos sobreviver. O sucesso é um editor antecipado e queremos antecipar o leitor. É uma filosofia diferente.

O sujeito que tenta acertar, erra. O sujeito que tenta errar, acerta. O erro virtuoso é um clássico. Se bem que não deseja clássico, o clássico é o erro do editor.

Não somos mendigos, ou oportunistas, trabalhamos duro para não apanhar da gramática. Para se defender das facas da próclise, das artimanhas das vírgulas, das ciladas dos adjetivos e da conjugação. Para contar uma história que possa ser relida mais do que lembrada.

Escrevemos para ganhar uma chance em sua mesa, para sair do meio da Muralha de Jericó de sua escrivaninha. Ser escolhido para a leitura já é tão difícil quanto aparecer em seu catálogo.

Catálogo! Pode mudar o nome na hora de responder as cartas de recusa? Não suportamos a frase “nosso catálogo já está fechado até 2010, mas agradecemos o envio do livro”. O catálogo é um padrasto que nos bate com o nosso próprio livro. Sem eufemismo, por favor? Que tal “minha paciência está esgotada até 2010, agradecemos a inconsequência”. Por que você não projeta, mas quando um escritor recebe uma negativa da editora buscará um duplo sentido em cada linha. Ele não repara que é uma carta padrão já enviada a milhares de natimortos. Anseia salvar alguma expressão, localizar uma esperança para não desistir. É capaz de entender o “muito obrigado” como prova de intimidade. E pensar alto: “Se ele não gostasse diria apenas obrigado, o muito significa que tenho chance”.

Um amigo mandou sua coletânea de contos para uma editora. Recebeu de volta o envelope pardo com aquela alegria amarela e azul do carteiro. Qual foi sua surpresa ao vasculhar sua criação e detectar centenas de intervenções do editor. Ele negava o livro e alterava a obra. Não corrigiu, não perguntou, passou a caneta mesmo. Cortou, apagou, rabiscou e transformou finais imprevisíveis em previsíveis. Açucarou parte das tramas. Reescreveu o volume para pior, numa espécie de cátedra de quebra de decoro editorial. Nem caberia dizer que a obra foi editada do jeito que estava por um novo selo, arrebatou quatro prêmios (dois internacionais) e foi finalista do Jabuti.

Loucura? Já avisei que não somos paranoicos. Realmente você nos persegue. Até é involuntário. Não há como ter culpa por olhar para trás, aprendemos contigo. Olhar o passado de um livro para convencê-lo do seu futuro.

Nunca ouvi um editor pedir desculpa. Por quê? Ou aceitar que desperdiçou uma oportunidade com a gente. Por quê? Não tem crise de consciência? Ou sempre é assim, passional, se ele se envolveu com outra editora é porque não nos merece? O sofrimento é um segredo que não se conta, lamento a desfaçatez da catarse.

Agora, entenda, o livro não é da editora, está na editora. Demoramos a compreender que cuidar de negócio não significa se prostituir. Durante séculos enxergávamos o editor como um benfeitor. Com a ideia de que ele se privava e corria risco apostando em anônimos. Ele é tão-somente um contato que talvez vire um amigo. Nossas razões são iguais às suas, mas sobra senso de humor.

Aceitamos dicas, revisões, sugestões, desde que a última palavra seja nossa. Mesmo que venha com a chantagem de que desse jeito não dá para editar. Não edite, não está fazendo um favor. Assim como não fiz um favor ao enviar o inédito. São escolhas. Editora não faz filantropia, escritor não faz filantropia, acho que finalmente somos adultos.

Consumimos expectativas para sentar frente a frente contigo. Para desvendar caminhos no estilo, para aceitar nossas limitações e retrabalhar as vertentes da tinta. Conselhos são maravilhosos, envolvidos em atenção, interesse e cuidado. Não temos arrogância para mudar parágrafos se percebemos que não funcionam. Então, não venha com ameaças. O livro seguirá com nosso nome. Temos somente um nome desde o início. A pobreza do nome nos enriquece. Ninguém pode roubar uma pobreza.

Ou, como avisou Maiakóvski: se produz melhor, pegue a caneta e escreva.

O sangue lateja. O resto some com a purpurina.
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O ESCRITOR vive e trabalha no Brasil e tem o desafio de convencer a si, à família, aos amigos e ao editor de que tem talento. Quando fracassa, é um chato. Se alcança a fama, é temperamental.

3 comentários:

Ana Letícia Leal disse...

Querida, adorei a matéria, obrigada por ter digitado tudo! (Ainda estou em Lisboa...)

Ana Cristina Melo disse...

Oi, Ana.
Por nada. Que bom que o esforço valeu a pena.
Beijos
Ana Cristina

Anônimo disse...

Obrigado pela matéria.
Não tenho acesso ao Globo.

bjs

Edgar