sábado, 4 de julho de 2009

Mesa de António Lobo Antunes

António Lobo Antunes não leu nenhum trecho de sua obra, pois como ele mesmo disse, não sabia onde havia colocado o papel. Mas ao final, quando ainda faltavam cinco minutos, ele revelou: "foi melhor assim". E eu concordo. Podemos ler seus livros a hora em que quisermos, mas ouvi-lo falar, são raras as oportunidades.

A mesa começou com a apresentação de Humberto Werneck. Mas não foi uma apresentação nos moldes tradicionais. Ele apresentou António contando uma pequena historinha do menino de sete anos, que na véspera de Natal, dentro de um táxi, pensava no que se tornaria, e decidia ser escritor. E ao chegar em casa, se pôs a começar a trabalhar no seu ofício. E que aos treze anos, já havia colocado num caderno o plano geral de sua obra completa, com os títulos inclusive.

António ia escrevendo e queimando no quintal da casa em Benfica, no bairro português onde viveu. Ele queria fazer o curso de Letras, mas o pai o "aconselhou" a fazer alguma outra coisa, e assim ele se tornou médico, e depois psiquiatra.

Sempre escreveu em folhas de papel pequenas, e em qualquer lugar. Mesmo quando se viu envolvido numa experiência dramática, a guerra de Angola, ele encontrava uma maneira de escrever. Até na Flip, ele encontra tempo para escrever uma coisa ou outra.

Mas apesar de toda essa paixão, ele só estreou aos 36 anos, com o romance Memórias de elefante. Motivo esse tardio que ele explica no decorrer da mesa.

Disse Humberto que ninguém tem razão para duvidar que ele é um dos maiores escritores do nosso tempo.

Assim acabou a apresentação de Humberto e, a partir daí, com muito bom humor, António Lobo Antunes foi falando sobre sua família, sua relação com o Brasil, sua estreia, seu processo de trabalho, seu amor pela literatura.

Transcrevo, na ordem, tudo o que foi possível eu captar do que ele disse.

Espero ter conseguido captar o melhor dessa mesa maravilhosa!

Sobre a leitura do trecho de um livro seu...

Lobo: "Eu penso que eu devia ler um trecho do livro, mas não tenho aqui o papel".

"Eu queria dizer que para mim a amizade é igual ao amor. A gente encontra um homem e fica amigo desde infância."

"Foi um encontro maravilhoso que tive com Humberto, com seu humor, sua cultura..."

Sobre sua família e sua relação com o Brasil...

Lobo: "Para mim o Brasil não é um país... são os cheiros, os sabores, os doces da minha avó, uma maneira de viver e de falar, e, sobretudo, é o meu avô que está aqui em toda parte. Uma das pessoas que eu mais gostei. É a terra dele, é a terra da minha família, de onde vêm os meus nomes: Lobo, Antunes."

"Os Lobos saíram para o Brasil no século 17/18; os Antunes mais tarde, no princípio do século 19."

"Ainda tenho muitos parentes no Rio de Janeiro".

"Meu avô lia pouco. Quando eu tinha 12 anos, um dia me mandou chamar ao escritório. Mandou me sentar à frente dele. 'Ouvi dizer que você escreve versos... Você é veado?' Eu não sabia o que era veado. E disse logo: 'Não, não, não.' Fui tirar minha informação, e o que me disseram me tornou mais confuso."

"Meu pai era muito severo. Era médico. Meu pai não queria ter filhos, queria ter campeões de karatê. Se nós apanhávamos, a chegar a casa, apanhava dele. 'Filho meu não devia apanhar', dizia".

"Sentávamos na beira da cama, e lia poesia para nós. O primeiro poeta que leu para nós foi Manuel Bandeira."

"Pouco antes de ele morrer, um dos meus irmãos perguntou, o que gostaria de deixar para seus filhos: 'O amor das coisas belas.'"

"Ele era um escritor frustrado."

"Embora fosse muito severo, nunca me contrariou quando descobriu que eu escrevia."

"Eu também pensava que meu pai não tinha lido meus livros. Mas depois que morreu, encontrei meus livros todos anotados. E deixou uma carta de 600 páginas. Deve ter levado uns 2 anos escrevendo".

Humberto pergunta: Por que você demorou tanto tempo para voltar ao Brasil?

Lobo: "Quando você diz a palavra Brasil, para mim não é a palavra que tem significado... Os cheiros, as coisas estão sempre comigo. Recordações doces, ao mesmo tempo tristes. "

"Quando meu avô morreu, minha avó deu tudo dele. Fiquei triste, porque eu tinha a certeza que ele ia voltar. Eu tenho a certeza que ele está aqui conosco."

Humberto: Você segue a literatura brasileira?

Lobo: "Meu pai comprava muito poesia brasileira. Para mim o grande poeta do século XX é Cabral."

Humberto: Você acompanha os prosadores?

Lobo: "Eu tenho uma relação mais difícil com a prosa, pois pego e tenho logo vontade de corrigir."

"Você aprende muito mais a escrever lendo poesia. Na poesia cada palavra tem um peso e uma carga."

Humberto: Você não é um grande admirador de Joyce?

"Eu admiro a proeza técnica"

"A gente leva muito tempo para entender que o livro inteiro tem que ser uma grande metáfora, e não o livro ser esmaltado, cheio de pequenas metáforas."

Humberto: Você fez 21 romances em 30 anos? Você escreveu bastante rápido?

Lobo: "Eu levei muito tempo sendo rejeitado por muitas editoras. Ninguém queria os livros. Em 77, uma pequena editora aceitou."

"Eu fiquei famoso assim. Então, passou em Lisboa um escritor, Marcio Souza, de Manaus. Deram para ele esse livro. Deixou num agente americano em Nova Iorque, era agente de João Ubaldo, Jorge Amado, Marcio Souza, Garcia Lorca, Drummond (...), e ele entrou em contato comigo. Eu achei que era brincadeira e não respondi. Depois ele mandou uma carta e eu achei chique ter um agente em Nova Iorque. (...) Aconteceu a mesma coisa, ele tentava colocar os livros nas editoras e ninguém queria. Ele dizia 'você vai conquistar o mundo', e eu não conquistava nada. Fomos ter com um editor de Nova Iorque e ele disse 'eu não li o seu livro mas vou publicá-lo'.
(...)
Tivemos críticas espantosas. Depois todos aqueles que não tinham querido, começaram a me procurar."

"Eu tinha escrito Memórias de Elefante, um amigo levou e voltou dizendo que leram ele e outro amigo. (...) Ele achava que devia tirar a primeira parte. O amigo achava que devia tirar a segunda parte. Foi a primeira critica literária que eu recebi."

"Eu tinha conhecido Jorge Amado. (...) Jorge levou tanta pancada da crítica daqui. O Jorge era muito melhor do que os livros dele. Era um homem de muita coragem, de muita capacidade de amar."

"João Ubaldo, em Lisboa, passava fazendo feijoada às 2 da manha, de calção e chinelo. (...) Um dia deu uma entrevista, que perguntaram: 'João, você já não escreve?'. E ele respondeu: 'Escrevo, meu pseudônimo é António Lobo Antunes'".

"Como ninguém queria um livro, eu ia escrevendo os outros".

Humberto: Voce planeja um livro?

Lobo: "Eu planejava por insegurança. Quando começava um livro, já tinha os capítulos todos feitos."

"Eu ainda não tinha compreendido que um livro é um organismo vivo, que tem o seu temperamento, seu caráter."

"Quando um livro é bom, ele se faz sozinho. A única coisa que você tem que fazer é tornar a sua mão feliz. Se a sua mão está feliz, o livro sai."

"Eu tenho muito medo de escrever. Só vale a pena escrever se for para ser o melhor. "

"Aos 14 anos você descobre que é muito diferente escrever e escrever bem. Aos 18, você descobre que é muito diferente escrever bem e escrever obra-prima".

"Escrever é sobretudo corrigir e reescrever."

"Você tem que ter uma atitude muito humilde em relação ao material."

"Nós não temos controle sobre o nosso trabalho e temos que ter uma atitude tão humilde."

"Cada sucesso não é mais que um fracasso adiado".

"Quanto à prosa, problemas oficinais e técnicos muito grandes, se você não for fiel a você mesmo, você fica sujeito a moda."

"Eu só tenho uma regra antes de começar a escrever: digo que vou escrever um livro que não sou capaz de escrever. (...) Tem que se pôr desafios cada vez mais intensos"



Humberto: Você quer mudar a arte do romance?

Lobo: "Claro que sim. Qualquer grande escritor muda a arte. Eu gostava de escrever um romance... é um quadro... As Meninas dos Velásquez."

"Você não trabalha com materiais novos, você trabalha com pequenas coisas que as pessoas não dão atenção."

"Todo aspirante a escritor deveria ter essa quadra escrita de um poema de Cabral:



'Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca'"

"Há palavras que existem para não serem usadas: advérbios de modo, adjetivo."

"Tirar tudo aquilo que não é faca, como diz Cabral."

Humberto: Fazer um romance não te ajuda a fazer os demais?

Lobo: "Eu nunca chamo de romance, eu chamo de livros. A distinção entre os gêneros normalmente é artificial."

"Escrever um trabalho é impossível, que você está trabalhando com emoções (...) quando você lê os poetas, você consegue transformar isso em palavras"

"Escrever é um ofício."

"Dica: nunca deixar uma frase com ponto final para o dia seguinte."
"Não terminar um capítulo e deixar o novo para o dia seguinte. Começar um capítulo é muito lento"

"Uma vez perguntaram a Picasso sobre inspiração. Ele disse: 'Ai, se ela viesse quando eu estou trabalhando'"

"Percebi que consigo aquele estado entre o dormir e o acordar, através do cansaço. (...) Quando trabalho, as duas primeiras horas são perdidas, os mecanismos lógicos ainda estão funcionando. (...) Depois, como você está cansado, as coisas começam a fluir melhor, a sair de regiões suas que voce não conhece. (...) Eu demorei muito tempo para entender isso."

"Quem estuda o problema a fundo, sai pelo outro lado."

"Em vez de profundidade, há uma infinidade de superfícies sobrepostas. A gente tem que desmistificar a idéia do escritor. (...) Toda entrevista é um exercício de vaidade. É o livro que tem que ser inteligente, não o autor."

"Eu lia Nabokov e ele estava sempre 'olha como eu sou inteligente'”

"Se você quer ser escritor, devia ver 10 minutos de Mané Garrincha jogar a bola. Aquilo sai da alma."

"Para escrever você tem que ter dentro de si Didi e Garrincha. Didi, a cabeça; garrincha, a mão"

"É a mão que escreve, mas a cabeça tem que estar a vigiar por cima."

"O livro é como uma estátua enterrada no jardim, você tem que tirar a estátua, e depois ir limpando".

"E é através desse ofício que você vai despertar as emoções."

"Quando você está escrevendo bem, dá a impressão que está debaixo de um ditado."

"Dá a impressão que é a mão de Deus que está na sua mão, a mão de um anjo que está ditando."

"Uma vez eu estava escrevendo, e as lágrimas caindo pela cara, e eu não sou um homem de muitas lágrimas. (...) Mas isso são momentos muito raros, nunca mais voltou a acontecer".

Humberto: Por que você está anunciando que vai parar de escrever?

Lobo: "Há alturas que você fica desesperado. Eu não vou ser mais capaz. O livro não presta. E você pensa 'para que escrever, vou deixar de escrever'. E a sua alegria é o seu tormento. Só vale a pena quando nos é inconcebível a vida sem isso. Porque ler nos dá muito mais prazer."


"Eu penso que era o leitor que devia estar na capa do livro, pois é o leitor que escreve o livro, não o escritor."

"O livro bom é um livro que foi escrito só para mim. (...) A gente se apaixona pelo autor através do livro."

Humberto: Você disse em algum momento que precisa arrendondar a sua obra e depois calar?

Lobo: "Você andou lendo tudo."

"Eu acho que a gente quando começa é como se os seus livros fossem a almofada que está fazendo para apoiar a cabeça quando morrer"

"Ficamos sempre aquém daquilo que criamos. É a grande frustração de quem trabalha com as palavras. Sempre ficamos nos questionando. (...) Aí e melhor escrever outro livro."


"Um dia compreendi que o livro está acabado quando o livro não quer mais. (...) Você sente que o livro está enjoado de você. O melhor é entregar ao editor."

Humberto: Seus livros estão cada dia menores?

Lobo: "Eu como leitor gosto de livros grandes. (...) O livro tem as páginas que eu quero"

"Os editores às vezes assustam com livros muito grandes. (...) Há as leis do comércio."

"Eu gosto de mudar."

"Como eu costumo dizer: a experiência é como os flutuadores de avião. Não servem de nada quando você está no ar."

"Quando eu comecei a ler seu livro, fiz uma prece, pois gostei muito de ti, 'Deus queira que não seja uma merda.'"

"Quando vou ler um livro de um amigo, eu não leio logo. Começo a rondar o livro como um cão, cheiro, farejo, pois tenho medo. Quando é uma pessoa que eu gosto, tenho medo. Quando é uma pessoa que não gosto, eu adoro."

"Eu tenho um prazer muito grande de ler os livros do Garcia Márquez, mas não gostava de ter escrito."


Humberto: O que você gostaria de ter escrito?

"Descobrir um livro bom é uma coisa extraordinária. (...) E todos os livros bons gostaria de ter escrito."


"Graças a Deus tenho descoberto muitos livros bons."



2 comentários:

José Alexandre Ramos disse...

Eu vi através da net e foi dos melhores momentos com o escritor desde sempre. O seu post interessa-me bastante por ter apanhado tão bem o encontro. Solicito, por isso, a sua colaboração no sentido de autorizar a citação integral do artigo em espaço próprio no site do escritor em www.ala.nletras.com. Será devidamente identificado e com o link para o blog. Obrigado desde já.

Ana Cristina Melo disse...

José,
realmente foi uma mesa maravilhosa.
E, sem dúvida, autorizo divulgar.
Abs,
Ana Cristina