domingo, 5 de julho de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#4) - 04/07/2009

Complemento do Caderno Prosa & Verso (Jornal O Globo), transcrevo a matéria Caldeirão Literário, um debate entre Milton Hatoum, Bernardo Carvalho e Cristovão Tezza, com perguntas de Miguel Conde.

Fonte: Caderno Prosa & Verso (O Globo). Sábado (04/07/2009)

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# Caldeirão Literário
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Por Miguel Conde (enviado especial * Paraty)

O GLOBO: Desde o romantismo, passando pelo modernismo e pelos romances de críticia social dos anos 1930 aos 1970, há uma tradição no Brasil de se exigir da literatura que ela de alguma forma represente o país. Isso ainda existe hoje, ou vivemos um novo momento?

BERNARDO CARVALHO: Eu deixo os decanos responderem.

MILTON HATOUM: Essa exigência de representar o país como afirmação de uma nacionalidade existiu no século XIX. José de Alencar foi isso. Mas o Machado já foi a contra-corrente. A literatura encontrou vozes muito diferentes do século XIX para cá. Difícil enquadrar num único discurso, numa única vertente.

CRISTOVÃO TEZZA: No romantismo, é claro que é um projeto de fundação do Brasil e houve uma literatura a serviço disso muito forte, que deixou marcas até hoje. Tem uma vertente que começa com José de Alencar e vai passando por vários autores. E outra linha mais abstrata da literatura brasileira que foi fundada pelo Machado de Assis. Hoje a gente vive uma liberdade total, em comparação à minha geração de anos 1970. Quando eu era guri, você vivia uma pressão ideológica muito forte.

HATOUM: Mesmo assim já sempre rupturas. No auge da ditadura apareceu "Lavoura arcaica" do Raduan Nassar. Você não enquadra isso num discurso denuncista contra a repressão. Há uma violência ali, enorme, mas há também um mergulho na subjetividade, uma vontade de estilo. E uma crítica ao patriarcalismo que está na base da sociedade brasileira, mas que não se refere ao momento histórico. A própria Clarice Lispector...

# ...ela chegou a ser chamada de alienada.

TEZZA: Você tinha um clima mais ou menos chapado. O discurso político te dava uma certa obrigação ética com relação ao momento.

HATOUM: Talvez eu mesmo tenha pulado essa década. Só fui publicar em 1989, senti esse tipo de constrangimento. O primeiro livro que eu ia escrever, e que acabei jogando fora, era uma crônica política.

CARVALHO: Do ponto de vista dos escritores não existe mais essa camisa de força, mas eu vejo na crítica mais abalizada, a crítica que você mais respeita no Brasil, uma demanda por um retrato do Brasil. Sempre. E isso é claro. O livro atual do Chico Buarque, do qual eu gosto muito, é claro que foi recebido com mais bons olhos do que o "Budapeste". A literatura não tem função no Brasil, que é um país de analfabetos, e as pessoas tentam justificar a literatura por uma tese sociológica. Na hora em que o Chico faz um romance machadiano, ele é reconhecido como um clássico. E o Machado, embora não faça uma busca de identidade brasileira como a do José de Alencar, depois do Roberto Schwarz virou, sim, o retrato do Brasil. E a Clarice Lispector é vista, sim, como uma escritora menor. Se você pedir para os grandes críticos brasileiros fazerem um ranking dos escritores nacionais, o Machado vai encabeçar, e o Guimarães vai vir atrás.

HATOUM: Acho que não.

CARVALHO: Você acha que não?

TEZZA: Primeiro que a universidade hoje é um arquipélago de fragmentos.

CARVALHO: Talvez porque eu esteja vindo de São Paulo, onde existe essa hegemonia.

# Você está pensando na USP?

CARVALHO: Totalmente.

HATOUM: Mas, Bernardo, há vários livros sobre Guimarães Rosa da USP.

CARVALHO: Eu sei, mas a tradição Antonio Candido, Roberto Schwarz, que é a que eu mais admiro no Brasil...

HATOUM: ...os dois escreveram sobre Guimarães Rosa.

CARVALHO: Tudo bem, mas o escritor maior para eles é Machado de Assis, inquestionavelmente.

HATOUM: Bernardo, Machado representou muita coisa. Nos contos Machado é um gênio. Aí de fato ele não deve nada a qualquer contista do mundo. E a crítica tem revelado nos últimos 30 anos não só como ele explora contradições do Rio ou do Brasil, mas outros temas, como a loucura. Já era uma coisa nova naquela época.

CARAVALHO: Existe um endosso da literatura que serve de ilustração de uma teoria sociológica do Brasil. Qual é o bom romance brasileiro? É o que ilustra uma teoria sociológica do país.

HATOUM: Isso de um ponto de vista.

CARVALHO: O ponto de vista mais importante da crítica brasileira. A cobertura da imprensa desse romance é incrível, porque dá o que pedem, o que se estabeleceu consensualmente sobre o que deve ser literatura brasileira hoje. O problema não são os escritores, mas o que resta de melhor na universidade, e que endossa esse tipo de livro.

HATOUM: Não é o caso, por exemplo, das análises do Davi Arrigucci. E os jovens também. Há jovens professores que não priorizam a visão mais sociológica, que há na França, na Inglaterra.

CARVALHO: Mas no Brasil ela é hegemônica. E é a que eu mais gosto no Brasil, mas há uma hegemonia da tradição do Roberto Schwarz sobretudo com a introdução do Machado como "o" escritor brasileiro. É como se você, se escapar dessa tradição, ficasse invisível.

HATOUM: Você acha isso?

CARVALHO: Acho. Se aparece o equivalente do Beckett hoje, fazendo uma ruptura, o que você faz com esse cara? Não tem recepção. Se houvesse um equivalente do Beckett entre os escritores brasileiros, não vai ser essa crítica que vai recebê-lo.

# Para vocês a ruptura ainda é um valor importante?

TEZZA: Sempre, nas não necessariamente ao modo do Beckett, que está ligado a um tempo, época, ideário. A literatura tem que trabalhar com a transgressão. Mas talvez num critério além do ideário formalista dos anos 1920, dentro do qual o pessoal normalmente trabalha. A ideia de criar...

HATOUM: ...uma nova linguagem...

TEZZA: ... o estranhamento como lei absoluta de reconhecimento da obra, porque você quebra o modelo, isso teve uma força tremenda. O estruturalismo colocou isso como uma espécie de Santo Graal, a obra estética desvinculada de qualquer coisa. A linguagem nunca é desvinculada de nada, ela é tudo. Sociologia, política, filosofia, está tudo ali. A gente constrói essa realidade paralela com esses fios, ela não cai do céu. Não adianta pegar o ideário estético de outro tempo e implantar a fórceps no século XXI. Você vê hoje um renascimento da prosa romanesca, uma linguagem capaz de se apropriar de todas as linguagens e ser um ponto de reflexão.

# A transgressão hoje estaria nessa contaminação do literário?

TEZZA: Não sei onde ela está, ela está na inadequação. A literatura tem que trabalhar nessa corrente de não ter lugar no mundo. O senso de inadequação é a alma da linguagem literária. Escrever é constituir um ponto de vista sobre o mundo. Sou otimista, está havendo um retorno da palavra escrita. O audio-visual foi uma implosão da palavra escrita no século XX. Hoje isso está voltando via internet. Você não abre uma página que não tenha coisa escrita.

CARVALHO: Mas você lê?

TEZZA: Claro que leio! Tudo bem, mudou a forma. Há uma fragmentação, ninguém lê dois parágrafos seguidos (ri), mas as pessoas estão escrevendo mais. A escrita voltou a ser um valor social. É considerada uma coisa legal. Há 20 anos não se considerava nada.]

HATOUM: Não acredito mais em romance de vanguarda. O último foi "Grande sertão". Esse tipo de transgressão linguística, jogar com neologismos, depois do Rosa... Mas do ponto de vista da estrutura, do modo de narrar, há uma variação infinita. Você pode contar uma história de mil maneiras diferentes. É inesgotável. Você pode jogar com essas estruturas, com o tempo, com o modo de narrar, aí é que está algum tipo de renovação. Não na linguagem.

# Vocês sentem essa falta de função social mencionada pelo Bernardo? Existe um sentimento de absurdo na empreitada literária no Brasil que faz com que as pessoas tentem justificá-la atrelando-a a outros campos?

TEZZA: A última coisa que vi sobre isso foi um certo movimento multiculturalista de valorização da literatura de periferia. Isso tem ganhado espaço até na universidade. Mas estou me sentindo meio esquizofrênico, porque a visão do crítico não é a do autor. Nunca sei bem o que escrevo (ri). É um processo intuitivo que mexe com tudo, uma linguagem meio suja, no bom sentido.

HATOUM: Se for um bom romance, uma ficção com um certo grau de complexidade, ela pode oferecer vários tipos de leitura sempre. O problema é você classificar. A classificação na literatura é a morte. "Literatura tem que ser isso, se não for isso não me interessa".

CARVALHO: Mas como este país não é especialmente educado para literatura, a crítica ainda é muito importante. A recepção do "Nove noites" não tem comparação com a recepção de nenhum outro livro meu. Porque é como se fosse um retrato do Brasil do ponto de vista de uma antropologia importante aqui.

TEZZA: Mas eu não li o livro dessa forma (ri).

CARVALHO: Eu não escrevi o livro dessa forma. Falo da recepção crítica.

HATOUM: O próprio Candido critica essas visões totalitárias. Ele que descobriu a Clarice, e acha que a crítica sociológica é uma das vertentes, como a psicanalítica, ou a antropológica. E também não sei, Bernardo, se hoje isso é hegemônico. O Brasil mudou, há jovens acadêmicos, escritores e leitores. Hoje a crítica está muito mais difusa no Brasil. Há leitores em muitos lugares.

TEZZA: A internet descentralizou o eixo. Nos anos 1980, você estava morto, enterrado se não tivesse os dois pés fincados lá. Hoje isso mudou.

CARVALHO: Eu acho que tem um esgotamento da crítica.

HATOUM: Não.

CARVALHO: Você acha que não?

HATOUM: Não. A crítica, depois do estruturalismo e dos estudos culturais, volta a trabalhar com seus clássicos.

TEZZA: Até o Todorov fez o mea culpa dele (ri).

HATOUM: Fez o mea culpa, nesse livro "A literatura em perigo". E ele mesmo falou que era culpa deles o fato de que ninguém mais tem prazer em ler um livro. A crítica foi tão formalista nos anos 1970.

TEZZA: Criou o cientificismo da literatura que foi imortal.

HATOUM: Os críticos que só leem os críticos, não leem mais as obras.

CARVALHO: Mas por outro lado tem uma tendência, gravíssima e irreversível, de esgotamento do excesso de subjetividade. Começou o questionamento dos caras de esquerda, dizendo "por que o cânone é branco, homem e do primeiro mundo? Por que não pode ter negro, mulher e não sei que?". Com isso houve um desbaratamento da crítica e dos critérios literários. "Por que o Beckett é o Beckett e eu, que sou um autor gay da periferia de não sei onde, não sou igual ao Beckett?". Houve um esgotamento da subjetividade, porque é óbvio que a literatura é subjetividade, e com isso os caras resolveram democratizar a literatura. Agora importa você ser gay, negro, mulher, da periferia. Contra o cânone, como se o cânone fosse de direita. O cara que faz o diário dele na internet está perguntando o tempo inteiro "por que o Beckett é melhor do que eu?" (risos). E aí todos se revoltam em nome, o que é um sofisma, da democracia e da cultura.

TEZZA: Tem uma questão política e filosófica que é a crise do relativismo. Você perdeu qualquer eixo de referência. Então eu não posso ter opinião nenhuma porque todas são antropologicamente iguais e eu fico solto no ar.

HATOUM: Isso é um fenômeno americano, não sei se chegou aqui.

CARVALHO: Lógico que foi exportado. Você está dizendo que há uma nova crítica, não há uma nova crítica.

HATOUM: Eu acho que há.

CARVALHO: Houve num certo momento a tentativa de dar função social para a literatura, fazendo uma literatura de periferia. É uma culpa, uma herança que você não resolveu e você lida com isso destruindo a subjetividade.

TEZZA: Mas para dizer que Machado de Assis é um grande escritor, tem que ter critérios objetivos. Tem que contextualizar, não pode fingir que não está em lugar nenhum. Você lê um livro e diz "esse troço é bom". Atrás dessa frase, tem uma maneira de olhar o mundo, sistemas de valores e representação.

HATOUM: É a linguagem que interessa. É ali que está plasmada toda a dimensao simbólica, social, histórica. Esse é o grande desafio da crítica. Como você encontra na obra as relações simbólicas e sociais. Por que ela tem qualidade do ponto de vista formal? É isso que vai mostrar, não as teses contidas nele.

CARVALHO: Tudo bem, há uma objetividade dentro do sistema de pensamento que analisa a obra, mas é uma convenção. Quem está fora pode achar uma porcaria. Quando falo dessa ressaca da subjetividade, não sei se é o mundo da burrice que não consegue lidar com a sofisticação da tradição, e com isso você barateia a tradição em nome de critérios extra-literários.

TEZZA: Mas vamos ver de que Brasil estamos falando. Quando a gente lembra a tradição literária brasileira, a gente fala muito daquela faixa de 10%, 15% da população que era letrada, em que o livro circulava. No Brasil rural você tinha a grande parte não letrada. O que aconteceu de lá para cá? Hoje o livro é um grande negócio no Brasil.

CARVALHO: Só me diz uma coisa que eu nunca entendi: qual é a porcentagem dos brasileiros em que circula o livro?

TEZZA: Está entrando no mercado consumidor de livros uma massa de brasileiros que não têm pai e mãe que leram, e que é uma massa nova.

CARVALHO: Eu não conheço.

TEZZA: Entra numa livraria e vê lá: "O gerente eficaz?", "Como ser feliz". Está havendo um fenômeno no Brasil semelhante ao que houve com a TV nos anos 1970. A metade do país viu uma torneira pela primeira vez na vida numa novela da Globo. A televisão foi um processo civilizador, que chegou antes do livro. Hoje está chegando uma massa de livros. Houve um deslocamento até da crítica. Todos os nomes que estamos citando aqui são dos anos 1960.

HATOUM: Há uma crítica mais jovem que tem a ver com uma escola da USP, mas há outra também. E há também os trabalhos em salas de aula em centenas de universidades. Professores trabalhando em surdina para cem, duzentos leitores. O Brasil mudou muito. Há uma proliferação de faculdades. Os cânones da crítica existem e vão continuar. Os estudos culturais são moda que passa.

CARVALHO: Mas não é isso. Você pega hoje o jovem escritor e ninguém lê Proust. O próprio escritor.

HATOUM: Mas nós lemos, é o que interessa (risos). Se os jovens não leram, problema deles.

TEZZA: Eu achava que era pessimista, mas o Bernardo... (risos)

CARVALHO: Mas é interessante como fenômeno social. A internet parece que vai dar democraria e não é democracia. Tem uma guerra à ideia de autor. O jovem autor acha que é moderno e democrático (risos) ceder os direitos para uma corporação que vai ganhar com a divulgação dos originais. O seu livro fica à disposição no Google para quem quiser, a menos que você desautorize.

HATOUM: É?

CARVALHO: É. Sou a favor disso, contanto que todo mundo abra mão da propriedade privada, inclusive os donos do Google. Havia antigamente um preconceito em relação ao trabalho intelectual, um trabalho de perua ou perfumaria. Aí houve uma conquista do Ocidente de respeito ao trabalho intelectual. O que há agora é um novo mundo um pouco chinês, pragmático, em que o que vale é o cara que vai ganhar grana em cima daquilo. Mas você não tem direito a exigir remuneração porque sua criação é de segunda classe. Isso vai começar a se autorreproduzir...

TEZZA: Mas você está paranoico. (ri)

CARVALHO: Eu sou paranoico, não estou paranoico.

TEZZA: A internet alavanca a literatura. Como circulavam os livros nos anos 1980? Era um inferno. Com a internet, a literatura está em circulação. Há muito mais gente falando ao mesmo tempo.

HATOUM: Também acho. Cada geração produz dois ou três escritores importantes. No fim das contas o livro ainda é muito poderoso.

CARVALHO: Mas o Beckett não é lido na Inglaterra ou nos Estados Unidos.

HATOUM: É um autor difícil, Bernardo. A última edição de bolso do Proust da Gallimard vendeu 100 mil exemplares. É uma loucura a quantidade de leitores do Faulkner, que é difícil.

CARVALHO: Você é obrigado a ler na universidade, mas se a própria universidade começa a dizer que a Toni Morrison é igual ao Proust.

HATOUM: Isso não está acontencendo.

CARVALHO: Como não está? Você pega o jornal e a Toni Morrison tem o mesmo peso do Proust.

HATOUM: Então traz a cachaça aí que eu vou me embebedar (risos)

CARVALHO: Mas é verdade... (Em tom de brincadeira) Vocês também, sabe o que vocês são? Vocês são muito diplomatazinhos, não falam nada... (risos)

TEZZA: Qual é a solução? Criamos um esquadrão de vigilância literária permanente (ri)?

CARVALHO: Eu não sou polícia, não sou ditador, só estou constatando.

TEZZA: Você está exagerando.

HATOUM: Nas universidades americanas, o Faulkner é muito mais importante do que a Toni Morrison.

CARVALHO: Porque tem professores que estudam Faulkner e foram formados nessa tradição.

HATOUM: Mas o que acontece nos EUA não acontece no mundo todo.

CARVALHO: Teve um levantamento numa Universidade de Brasília dos tipos de personagens dos romances brasileiros para chegar à conclusão se os romances brasileiros são democráticos ou não democráticos (risos). Vocês sabem do que eu estou falando.

HATOUM: É uma coisa mais americana. Tem a ver com um discurso das minorias como uma crítica ao cânone da literatura ocidental, mas é uma crítica que não vingou na Europa, não vingou na América Latina.

CARVALHO: Mais ou menos, porque o enfraquecimento da crítica, o mercado passa a prevalecer. E o que é o mercado? É a coisa da facilidade do entendimento. Se você fizer um romance de ruptura, inesperado... Se eu sou um cara burro, é mais fácil que o mundo seja burro para mim também. Eu tenho limites, coisas que eu não consigo compreender. Então para mim é melhor que elas desapareçam.

# Essa consciência de ser escritor num país de analfabetos é uma questão apenas existencial ou é também uma questão literária?

CARVALHO: Isso cria um lugar do paradoxo, da contradição, que é um lugar trágico muito rico para um escritor. Escrever num país em que as pessoas não leem é riquíssimo. Que escritor nasce daí? O Machado é um pouco isso, a consciência disso o tempo inteiro. É riquíssimo, mas é sofrido, é horrível. Óbvio que você prefere escrever num país em que todo mundo lê.

HATOUM: Há leitores no Brasil. Pelos livros a gente sabe.

CARVALHO: Mas as tiragens são muito pequenas em relação à população.

HATOUM: Mas o próprio Don DeLillo, quando esteve aqui na Flip, me disse: hoje além de escrever livros a gente tem que vendê-los. Hoje o leitor é muito diferente dos anos 1950, quando você só tinha acesso a jornal, toda a cultura era escrita. Hoje o que importa é a visibilidade, a celebridade, todo mundo é escritor.

# Para terminar: a posteridade é o que importa para vocês?

HATOUM: Para mim não. Eu acho que este planetinha obsceno daqui a 500 mil anos não vai existir mais, nem Proust deveria existir por milhões de anos, nem Beckett. Nós caminhamos para o abismo, irremediavelmente (faz um longo silêncio, até que Carvalho e Tezza riem). Caminhamos para o abismo e esse planeta vai virar um lixo, já é um lixo. Eu não sou ingênuo de acreditar na civilização. A melhor frase para mim é aquela do Benjamin: "não há nenhum documento da civilização que não seja também um documento de barbárie". Esse papo de dizer que nós somos a barbárie e a Europa é a civilização é o maior engodo da História. A história da Europa é só de guerras. No fundo o que eu tento fazer? Escrever com honestidade. E ter alguns poucos leitores fiéis.

CARVALHO: Eu discordo do Milton. Eu acho que todo escritor escreve para a posteridade, sim. A literatura é uma luta contra a morte, não faria sentido de outro jeito. Por mais pessimista que você seja, se eu fosse pessimista mesmo não estava escrevendo, tinha me matado. Se você escreve, é o negócio do Thomas Bernhard, do Beckett, o mundo que ele representa ali pode ser terrível mas ele continua escrevendo, e aquilo demanda um esforço incrível. É uma luta contra os limites.

HATOUM: Mas, Bernardo, até por uma questão de sobrevivência econômica, eu quero leitores enquanto vivo (risos). Eu prefiro leitor por inteiro, mas se for leitor médio também que venha.

CARVALHO: Mas tem alguma coisa que te move a escrever, você quer lutar contra alguma coisa, com seus limites, é isso que toda arte faz. Não é só para conquistar um público leitor e morrer. Você almeja alguma coisa com os livros.

HATOUM: A gente almeja alguma coisa, mas depois do Kafka, e dos russos e...

CARVALHO: Tudo bem, mas eu fui à Rússia e tinha uma menina que estudava português e achava Machado de Assis uma porcaria, porque "quem é Machado de Assis comparado a Tolstói?"

HATOUM: Alguma coisa ele é, comparado a Tolstói. Ela está errada.

CARVALHO: Também acho, mas, bom...

# Tezza, e você? A posteridade...

TEZZA: Isso realmente não me preocupa. Eu tenho uma urgência. Eu vivo um momento presente brutal com a literatura, a literatura para mim é descobrir o momento presente, saber onde eu estou. E é um processo que junta desejo, prazer, ansiedade, angústia. De certa forma a construção da minha cabeça, da minha vida, foi feita pela escrita. Eu escrevendo fui, não vou dizer me descobrindo, mas isso foi me dando a medida de mim mesmo. Não cheguei ao fim e não vou chegar, mas alguma medida.

HATOUM: Quem escreve não pode fazer outra coisa.

TEZZA: Exatamente.

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