domingo, 13 de setembro de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#6) - 12/09/2009 - Resenha de A conjura

Continuação das pílulas do caderno Prosa & Verso, do dia 12/09/2009:

O crítico aprendiz
Por José Castello

Leio "A conjura", primeiro romance do angolano José Eduardo Agualusa, lançado em 1988 e enfim entregue aos leitores brasileiros (Editora Gryphus). Uma suposição marca (atrapalha) minha leitura: diante de um livro de estreia, espera-se que o crítico se coloque na tripla posição de decifrador competente, avalista autorizado e juiz rigoroso. Isto é, que leia o que ninguém consegue ler, que ateste e autorize um destino e que julgue sua potência.

Esta noção dominante aproxima a crítica literária da ciência, do sacerdócio e do direito. Mas a afasta da literatura. Quando lê um primeiro romance, mais do que nunca, faltam ao crítico os antecedentes com que possa confrontar e medir o que lê. Resta-lhe a mão vazia. Ele trabalha muito mais com a cegueira do que com a visibilidade.

Nesses casos, o crítico deve se colocar, ao contrário das boas regras, na posição submissa de aprendiz. Isso não quer dizer que sua leitura seja inocente, tampouco assegura a pureza de suas ideias. Quer dizer apenas que, diante de um primeiro livro, o crítico se vê obrigado a exercitar, mais que nunca, o fundamento de qualquer leitura: a capacidade de se assombrar.

Sei que a posição que defendo não é dominante. Alguns a descartam como fantasiosa, medrosa e submissa. Recentemente, em um debate literário, uma senhora da plateia - depois de se desculpar, como se fizesse uma observação quase obscena - me perguntou se não acho que minha posição diante da literatura é "feminina".

Existem muitas superstições a respeito da suposta "passividade" das mulheres. Basta ler escritoras como Clarice Lispector, Virginia Woolf e Florbela Espanca, porém, para entender o quanto o feminino é, também, feroz e contundente.

Inverto a observação da gentil senhora. Penso que minha posição como leitor e (consequência, e não causa) como crítico se pauta por alguns atributos essenciais do masculino. Quem é o pai, senão aquele quem, apesar do papel de chefe e de provedor, está predetermiado (basta ler os gregos) a ser "assassinado" pelos filhos? O que define um homem não é, enfim, sua morte?

Assim também acontece com o crítico, e não só com ele, mas com qualquer leitor. Se ele se deixar invadir pelo que lê (posição supostamente feminina), se aceita os pedidos e caprichos do texto (posição supostamente do homem), só assim ele chega, enfim, a ler um livro. Explico bem o que entendo por isso: a "sofrer" do livro, e não a dominá-lo.

Em "A conjura", Agualusa narra os primeiros dias de uma nação, Angola. No século XIX, uma terra ainda a inventar. "Angola era terra de muitas e variadas mortes", narra, "ruim para tímidos e para fracos". Nessa colônia distante, onde um agricultor manda assar uma escrava para dar de comer a seus cães, os nascimentos vêm marcados pela fúria da morte. O passado é uma maçaroca de lendas e de crimes. O presente é um buquê de espinhos.

No romance de Agualusa, os personagens se misturam e se desencontram, como que perdidos em uma selva. Todos os projetos da colônia se resumem a um: o desejo de pacificação. Única forma de esboçar uma verdadeira independência. Estranho caminho: para pacificar é preciso fazer a guerra.

Nascimento remoto não só de uma nação, mas de um escritor, "A conjura" ilustra a luta de Agualusa para domar sua agitação juvenil, pacificar seus conflitos interiores e esboçar um retrato de si. Debruçado sobre Angola, ele aprende quem é.

Nas lutas do século XIX, o contrabando de armas alimenta os pequenos crimes, com que, enfim, as batalhas se decidem. Também Agualusa contrabandeia heranças - do realismo, da narrativa histórica, do romance de formação. A estreia é sempre um assalto ao passado. Todo escritor nasce de outros e escreve com as mãos sujas de sangue.

Hoje, jovens escritores afirmam - como se isso fosse um ato de coragem - que não gostam de ler. Pior: que não precisam ler. Supõem que esta recusa basta para livrá-los das heranças e dos antecedentes. Apegados à fantasia do nascimento absoluto, repetem, sem saber, as fórmulas antigas. Deviam ler Agualusa, para quem o passado é a estrutura do presente. Sem ele, a realidade desaba.

No século XIX, Angola paga um preço doloroso ao progresso. Uma nação, conforme avança, se destrói. A vida se torna mais complexa e menos ingênua. Também escrever um primeiro livro é desconstruir-se, isto é, livrar-se do que "naturalmente somos". Nada há de natural na literatura. Não se escreve sem, antes disso, destruir um mundo.

Em "A conjura", o que sobra do velho projeto "natural" se encarna no papagaio Manaus, que Alicinha herdou do pai. Um bicho idoso, que perdeu as penas da cauda, rouqueja e está quase cego. "Ademais tropeçava nas palavras, confundia as coisas". Mais que o corpo, é a linguagem que, despida de sua ilusória bondade, passa a nos falhar. Só quando revira e torce a linguagem, um escritor começa a escrever.

A literatura não se interessa pela civilização e pelo progresso. Ela não é a montagem de ideais, mas, ao contrário, sua desmontagem. Nada assegura que um romance escrito no século XX seja superior (um "avanço") a um romance do século XIX. A literatura é indiferente à lógica dos relógios. É extemporânea.

A cada palavra que escreve (que lhe sai), o escritor desmente a palavra planejada. Nos livros de estreia, ainda temerosos de se arriscar, os escritores em geral se agarram aos ideiais antigos de boa educação, desenvolvimento e progresso. Ocorre que as torrentes da escrita são mais fortes. Se o autor escreve para valer, elas logo o arrastarão para fora de seu caminho. A isso se pode chamar de destino.

O projeto republicano da nova Angola se constrói à custa de dores devastadoras. É entre destroços e costurando feridas que uma nação se levanta. Também o escritor sofre de distúrbios que o ferem e modificam. Fazer literatura é, um pouco, "assassinar" o primeiro livro, destino de que José Eduardo Agualusa não escapa.

Ler "A conjura" é penetrar nesse momento inicial, em que as lições de escola e os ideais ainda comandam. Ao crítico sereno, resta seguir os primeiros passos do jovem escritor e aprender com eles um novo modo de nascer.

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