domingo, 6 de setembro de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#3) - 05/09/2009

Continuando as pílulas do Caderno Prosa & Verso de ontem, transcrevo a resenha escrita por Virgínia Vasconcelos Leal sobre o romance Hotel Novo Mundo, de Ivana Arruda Leite.

Cinderela às avessas no caos urbano
Uma mulher cheia de contradições protagoniza o primeiro romance de Ivana Arruda Leite

Hotel Novo Mundo, de Ivana Arruda Leite, Editora 34, 128 páginas. R$ 29

Por Virgínia Mª Vasconcelos Leal*

"Hotel Novo Mundo" é o primeiro romance de Ivana Arruda Leite, autora destacada de livros de contos como "Falo de mulher" (Ateliê Editorial) e "Ao homem que não me quis" (Agir). Seu estilo cheio de orações curtas, frases de impacto, inversão de expectativas, títulos bem sacados e muita ironia prevalece nas narrativas curtas e mínimas, em especial em temas caros às mulheres e seus múltiplos relacionamentos. Em seu romance ainda há muito de tudo disso, mas o gênero tem seus desafios próprios. E Ivana Arruda Leite resolveu encará-los.

Autora opta por diversos focos narrativos

Um deles foi mesclar diferentes vozes narrativas, em meio à primeira pessoa dominante da protagonista Renata. Ela, esposa de bem-sucedido advogado carioca, larga tudo após flagrar o marido em um motel com outra, e resolve voltar para sua São Paulo, com alguma roupa, pouco dinheiro, e nada de cartões de crédito, talões de cheque e celular. Instala-se no Hotel Novo Mundo, onde seu vizinho de assento de avião, Divino, iria ficar. Acompanhamos, então, uma semana na rotina do hotel e de seus ocupantes. Nesse estabelecimento de "ambiente familiar", onde "não se costuma chegar de táxi", encravado no centro da cidade, Renata (re)elabora a própria vida. Como um romance de aprendizagem, essa "Cinderela às avessas" (não faltam referências ao conto de fadas) convive com tipos diversos e com seu próprio passado de ex-prostituta alçada à "alta sociedade".

Em meio a múltiplas referências ao cheiro da comida caseira do hotel e aos problemas cotidianos de seus hóspedes, ela começa a lembrar de como a vida "pode ser simples", mesmo no caos urbano, nos corredores lotados dos hospitais públicos, nas boates decadentes, nos empregos mal remunerados, "honestos" ou não. Mas, na mistura de vozes do romance, a redenção nem sempre é tão imediata. A protagonista "renascida" (muitas personagens, como também o hotel, têm nomes como um sentido alegórico, o que por vezes é desnecessariamente explicitado para o leitor) é acossada pela voz de César, o ex-marido que aponta a sua "bobagem de querer ser pobre", pede perdão e insiste em sua volta.

Não só nessas inserções surgem as contradições da (re)entrada de Renata em um "novo mundo". Ao longo de seu discurso, aparecem as diferenças entre o que ela diz e ouve e o que "de fato" seria dito, por trás das máscaras sociais. São muitos exemplos ao longo do romance, como na sua consulta ao pai-de-santo Lauro, também morador do hotel. Ao contar que "trepou" com Divino, no diálogo direto aparece um conselho "sensato". Logo depois, a crítica mordaz: "Pô, a mulher dá pro cara, tá cheia de culpa, e vem buscar o meu aval pra continuar trepando? O que que eu tenho a ver com isso? Se quer perdão, devia ir numa igreja, até porque no candomblé não existe pecado".

Ivana Arruda Leite constrói um romance dialógico, não só pelos vários focos narrativos, mas também pela polêmica inserida na própria narração de Renata, na qual aparecem suas dúvidas e suas modificações a partir de seus encontros. Não à toa há tantos "serás" inseridos no romance, até mesmo como forma de criar um diálogo consigo, com os outros, com os leitores e leitoras, enquanto se busca um novo jeito de ser.

Entre o estilo grosseiro e os clichês românticos

Sendo assim, não é contraditório que a linguagem de Renata oscile entre o estilo grosseiro e ácido e os clichês românticos. Tal oscilação revela as suas várias facetas, que têm uma certa semelhança com as Dolores do conto "Quatro Dolores" de "Falo de mulher". Entre ser prostituta, freira, dona de casa e socialite, qual é o melhor destino/vocação para uma mulher? Explicitar a dúvida é chegar à conclusão de que não existe nada predeterminado. De certo, só mesmo os preconceitos existentes sobre Renata, além daqueles seus próprios, denunciados desde os primeiros momentos de sua "nova" vida: de seu olhar pretensamente ingênuo sobre as pessoas, passando pelas críticas contundentes, até a busca de reconhecimento pela sua "bondade".

Com vários andamentos diferentes, Renata entusiasma-se e emociona-se com as histórias que ouve, portando-se, de vez em quando, como uma repórter ou antropóloga a entrevistar os outros. Essa postura, muitas vezes, a afasta do cenário do qual tenta fazer parte nessa nova etapa. Cabe ao leitor e à leitora decidirem se ela conseguirá tal façanha, mesmo que o final penda para algo feliz. Mas, como se trata de Ivana Arruda Leite, há sempre que se ter desconfiança dos finais tão harmoniosos. Vale a pena acompanhar o recomeço de Renata, desde que não esqueçamos da palavra continuamente repetida por ela: "Será?".


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* Virgínia Mª Vasconcelos Leal é doutora em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (UnB)

3 comentários:

Fatima Cristina disse...

Oi Ana!

A resenha é muito boa mesmo.
Ela foi feita com muito profissionalismo e deu ao romance de Ivana o valor de sua qualidade. Parabéns as duas e a você também por nos oferecer essas nobres pílulas!

Beijos!
(estou no momento de férias com a família na praia da Croácia, mas nao posso deixar de ler as novidades do blogs amigos...)

Ana Cristina Melo disse...

Férias é sempre bom, não é? Vai divulgar aquelas fotos maravilhosas no teu blog, não vai? rsrs

Beijos

Laura Fuentes disse...

O primeiro romance da Ivana bem que merecia um comentário abalizado como este. Obrigado por nos possibilitar ler a crítica.