domingo, 13 de setembro de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#5) - 12/09/2009 - Resenha de Mundos de Eufrásia

Continuação das pílulas do caderno Prosa & Verso de 12/09/2009:

Uma parceria amorosa
Romance de Claudia Lage renova as relações entre literatura e História

Mundos de Eufrásia, de Claudia Lage. Editora Record, 420 pgs. R$ 47,90

Por Cristiane Brasileiro

"Mundos de Eufrásia", romance de Claudia Lage que tem mobilizado intensamente crítica e leitores desde o seu lançamento recente, merece uma atenção detida. Tem algo nele que engana e desengana. A começar pela autora: estreante no gênero e ainda jovem, mostra um poder de fogo e uma consistência que surpreendem.

Numa passada de olhos, o livro pode parecer um folhetim romântico. Afinal transcorre, em boa parte, na segunda metade do século XIX, há uma dupla central de apaixonados, suas famílias têm rivalidades profundas, e os dois estão no furacão de um mundo que se lhes impõe e dilacera. Um desejo de totalidade também está lá, assim como a capacidade de seduzir o leitor. E a narrativa tem, ainda, uma base factual: o longo relacionamento de Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco. Ela, bela herdeira vinda de uma família escravocrata ligada a latifúndios; ele, jovem talentoso, criado na corte para suceder o pai na política, dedicando sua vida à causa da abolição da escravatura no Brasil.

Luta pela liberdade ganha outra abrangência

As diferenças do livro em relação a esse quadro de superfície, no entanto, são notáveis. A começar pelo casal central, que apresenta nuances muito distantes das idealizações românticas, e tem como inimigo não apenas o mundo externo, mas principalmente suas próprias vacilações. Nabuco, defensor público da libertação de escravos, não pode deixar de sentir humilhado por uma mulher que luta pela própria autonomia. Eufrásia, criada por um pai visionário que lhe deu asas para transitar com desenvoltura extraordinária no campo das finanças, já não se sente presa à obrigação de se casar para produzir herdeiros, mas deve permanecer solteira para não passar a um lugar subalterno diante de um marido.

Como que caminhando sobre um fio de navalha, vemos no romance que o liberalismo importado da Europa não penetra nas discussões políticas e nas relações pessoais com a mesma velocidade, e assim a luta pela liberdade ganha outra abrangência. É aprendizagem e desafio íntimos, ao mesmo tempo que um chamado à ação ainda mais cotidiana e por isso mesmo crucial. Noutra dimensão do romance, relações tradicionais entre literatura e História também estão radicalmente alteradas, e a pesquisa documental é usada como fagulha para a imaginação (re)criar mundos e verdades especificamente humanas.

Que fique claro: a História nesse romance não aparece como discurso ao qual a literatura deva se subordinar, ou como terreno seguro onde a ficção precise se apoiar. É muito mais, como avisa a bela epígrafe de Cecília Meireles que abre o livro: o “atroz labirinto/ de esquecimento e cegueira/ onde amores e ódios vão”. Começa a ser captada através de uma “certa simultaneidade de sensações” que atinge a narradora de forma avassaladora, ligando-a de repente à presença assombrada de uma mulher vinda de outro século. O trabalho de pesquisa segue, nesse contexto, empreendido com maturidade suficiente para que sua presença se torne quase invisível, e a representação literária passe a incorporar o clima “de época” da mesma forma que um romance que se passasse nos dias de hoje exalaria o nosso próprio tempo. Estamos, nesse sentido, mais no domínio das mentalidades do que das faturas econômicas e tecnológicas, mais no âmbito das relações pessoais do que dos feitos públicos.

As datas e lugares até comparecem, mas o objeto buscado é outro: quanto da estrutura patriarcal e das transformações e impasses do capitalismo aparecem no corpo solitário e aterrado das mulheres no parto, na dura aprendizagem da espera e do silêncio, no novo horror de um jovem diante de um escravo açoitado e renomeado compulsivamente, na perplexidade de um rapaz diante de uma mulher com “olhos sem desvios que chamam o homem escolhido”, nos grandes deslocamentos físicos que abrem horizontes e desnorteiam num mundo crescentemente globalizado, nos sentimentos que ligam os protagonistas ao país onde nasceram – e, por outro lado, o tornam quase irrespirável.

A perspectiva adotada pela autora fica muito visível, ainda, no trabalho fino e original de alternância de vozes. Aparecem, assim, confrontos entre planos diversos da consciência de um mesmo personagem, como na oração diária que se repete e que se inventa.

Textos que iluminam e atormentam os protagonistas

Diálogos vibrantes conseguem flagrar súbitos abismos e desejos encobertos até aquele preciso instante. Admirável é também o rendimento dramático dado a figuras como Castro Alves e Baudelaire, George Sand ou Balzac. Longe de aparecerem como meras referências enciclopédicas, seus textos iluminam e atormentam os protagonistas. Um poema de Castro Alves, por exemplo, faz aflorar a mesma sensualidade corajosa que marcou sua lírica; um poema de Baudelaire enche de luz e escuridão um novo tipo de encontro amoroso que é sempre fugaz e, no entanto, definitivo.

Não por acaso, o encontro que marca publicamente a união do casal principal se deu durante uma travessia pelo mar, cenário instável mas grandioso. Porque não é pouca ambiciosa aquela utopia que ao longo dos tempos vem eletrizando a história humana: a emergência do que cada um possa ser de mais singular e pleno, assim como a parceria amorosa, enfim libertadora que tem sido entrevista em eventuais clarões, buscada em meio a todos os constrangimentos, tão raramente experimentada.

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