quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#5) - 01/08/2009

Eu prometo, eu cumpro. Fiquei de digitar toda a reportagem que saiu sobre o poeta Rodrigo de Souza Leão. Mas a semana está enroladíssima. Então, publico hoje uma parte e o restante sai até sexta-feira.

Arte entre os extremos

Convencido de que em Itaguaí a loucura era uma regra, o psiquiatra Simão Bacamarte tomou a decisão lógica e despachou os loucos para a rua. Trancou-se no hospício em companhia de sua aberrante sanidade, e de lá só saiu morto. Obra-prima de Machado de Assis, “O alienista” vira de cabeça para baixo os chavões positivistas sobre demência e razão. A loucura, por sua vez, também demole nossas ideias a respeito de literatura. Para o carioca Rodrigo de Souza Leão, cuja morte completa um mês amanhã, a vocação da escrita se manifestou junto com a esquizofrenia, aos 23 anos de idade. Em 2008, aos 42, ele lançou “Todos os cachorros são azuis” (7Letras), elogiado romance de estreia que concorre ao Prêmio Portugal Telecom. Era um escritor “lírico, irônico e melancólico”, escreve o poeta Ramon Mello, que adaptou o livro para o teatro. Ao morrer, deixou no computador um segundo romance de 300 páginas, do qual trechos inéditos são publicados nesta edição.

Leão era apaixonado por Rimbaud e admirava Nise da Silveira, criadora do Museu de Imagens do Inconsciente. Luiz Carlos Mello, diretor da instituição, explica seu recém-concluído livro sobre a vida e o trabalho da psiquiatra, uma pioneira que mostrou como a criação artística ordena as emoções dos pacientes e dissipa preconceitos da sociedade. A morte de Nise completa dez anos dia 30 de outubro, data que também motiva a discussão sobre a fronteira porosa entre delírio e realidade.

Lembranças do mundo azul
O delírio e a lucidez do escritor carioca Rodrigo de Souza Leão, que morreu em julho
Por Ramon Mello

O mundo ficou mais triste com a morte do escritor Rodrigo de Souza Leão. Soube da notícia durante a última edição da Festa Literária Internacional de Paraty, através da homenagem realizada por Carlito Azevedo no painel “Evocação de um poeta”. Fiquei chocado. Rodrigo foi uma das maiores surpresas que tive na vida, seu delírio e lucidez me fascinavam – poesia pura, a mesma matéria-prima dos textos de Stela do Patrocínio, Maura Lopes Cançado, Lima Barreto, Samuel Beckett e Antonin Artaud.

Em novembro de 2008 recebi um exemplar do romance “Todos os cachorros são azuis” (7Letras) para realizar uma entrevista com o autor para o site Portal Literal. Peguei o pequeno livro, fui para um café e mergulhei no universo lírico, irônico e melancólico de Rodrigo de Souza Leão: a trajetória (autobiográfica) de um homem internado no hospício.

No mesmo dia liguei para Rodrigo e combinei um encontro. Ele só fez uma ressalva: “A entrevista tem de ser aqui em casa”. Topei. Em seguida, justificou: “Sou esquizofrênico e faz alguns anos que não saio de casa”. Fiquei receoso, talvez por medo de que o encontro um esquizofrênico me revelasse que, afinal, não éramos assim tão diferentes. Mas não desisti, fui até Rodrigo. A entrevista aconteceu numa quinta-feira.

Paixão por Rimbaud e horror ao hospício

Quando cheguei ao apartamento, a porta da sala estava aberta, e o autor me esperava sentado numa sofá florido, acariciando um cachorro. Foi ele quem fez a primeira pergunta: "Gostou do livro?" Depois levantou, apertou minha mãe e disse: "Não repara, minhas mãos estão tremendo por causa dos remédios. É uma merda: engorda, enfraquece os dentes e deixa mão amarelada. Só não deixa brocha. Mas eu fico calminho", disse com um riso irônico.

Começamos a falar sobre o título do seu livro: "Na minha primeira infância eu tive um cachorro de pelúcia azul. Depois esse cachorro sumiu e nunca mais eu vi. É forte lembrança desse tempo. (...) Mas nenhum cachorro é azul, é bom deixar claro. Só os cachorros de pelúcia são azuis".

Por duas horas, Rodrigo falou sobre a paixão pela poesia de Rimbaud, o sofrimento em lidar com a esquizofrenia, a admiração por Nise da Silveira e o horror ao tratamento concedido aos loucos no hospício: "São lugares tão bonitos que lembram cemitérios". Seu irmão, Bruno, acompanhou o encontro e tornou a conversa mais engraçada ao revelar curiosidades sobre o poeta, como o hábito de assistir ao programa da Igreja Universal do Reino de Deus, embora gostasse de ler Nietzsche e não tivesse muita crença: "Nem sei se Deus existe. Eu sou meio revoltado com Deus. Por que eu fui nascer esquizofrênico?"

Próximo do final da entrevista, perguntei o que era mais importante em sua vida, e Rodrigo respondeu: "O mais importante, no momento, é eu não saber o que é a coisa mais importante na minha vida. É saber colocar importâncias variadas. É importante que eu continue estável e consiga viver o máximo de tempo possível."

E, por fim: "Você quer viver muito?"

"Não. Eu espero viver pouco. Se eu conseguir viver até 50 anos ficarei contente. Porque viver muito é para quem não tem problemas. Quando a pessoa tem muito problema é até melhor morrer cedo porque se livra um pouco dos traumas e angústias. Sou uma pessoa muito traumatizada. Mas feliz! Eu sou feliz. Posso dizer que sou muito feliz, mais feliz que a grande maioria das pessoas. Eu não estou realizado porque ainda estou no meu primeiro livro. Estou na batalha para publicar um livro há muito tempo, desde os 27 anos."

Depois desse encontro, Rodrigo passou a me ligar todas as quintas-feiras por volta das 15h. Com o decorrer da amizade, criei coragem e pedi autorização para adaptar "Todos os cachorros são azuis" para o teatro. Para minha surpresa, Rodrigo me enviou a autorização por escrito, com um CD da sua banda Krâneo e Seus Neurônios -- uma produção experimental em parceria com Gizza Negri. Depois de inúmeras consultas por telefone e trocas de e-mails, finalizei a adaptação. Mas, infelizmente, não tive tempo de lhe mostrar o trabalho. Resta, agora, homenageá-lo no palco.

Sua obra merece ser publicada e reavaliada

Rodrigo de Souza Leão não precisa de sentimentos de piedade, o que está muito claro na carta de despedida deixada por ele antes de ir para o hospital, onde morreria de ataque cardíaco: "Nunca tenham pena de mim. Nunca deixem que tenham pena de mim. Lutei. Luto sempre". Não tenham pena de Rodrigo, apenas cuidem de sua obra. "Os loucos têm seu céu particular", ele afirmou.

Mas, afinal, o que o poeta pensava sobre a morte?

"Eu torço para que exista algo além. Gostaria de ver o que as pessoas acham de mim quando eu estivesse morto. Sabe? Para saber se meu melhor amigo iria chorar, se alguma namorada ia lembrar de mim, se meu livro ia vender depois de morto... Porque depois que morre todo escritor vende", profetizou Rodrigo.

Não tenho dúvidas de que o mundo azul de Rodrigo de Souza Leão nos oferece um caminho infinito. Os poemas do blog Lowcura devem ser reunidos. "Carbono pautado", "Há flores na pele" e "Todos os cachorros são azuis" merecem edições novas, acompanhadas de textos críticos. E "Tripolar" tem de sair da gaveta logo. Sua produção literária merece ser republicada, relida e reavaliada.

Ficamos com a lembraça do seu mundo azul. Paz, meu amigo.

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RAMON MELLO é poeta e autor de "Vinis mofados", que será lançado pela editora Língua Geral



O termo 'loucura' não pode eclipsar 'literatura'
Por Sergio Cohn


Em 2001, havia acabado de criar a Azougue Editorial quando conheci Viviana Mosé. Ela me contou que estava interessada em publicar um original com os poemas da Stela do Patrocínio, uma interna do mesmo hospital psiquiátrico de Arthur Bispo do Rosário que impressionou artistas e pesquisadores pela força poética de sua fala nos anos 1980. O projeto imediatamente me atraiu. Encaixava-se perfeitamente na ideia da editora, de trabalhar com o que o poeta norte-americano Jerome Rothenberg denominou "etnopoesia": poéticas outras, para além das tradições literárias ocidentais.

Rothenberg usa esse conceito criando antologias que misturam poéticas africanas, ameríndias e asiáticas com textos de autores modernos e contemporâneos. Não há uma separação clara entre o que está dentro ou fora da tradição ocidental, num conceito próximo ao do Museu das Origens de Mário Pedrosa. Interessam-lhe não apenas essas poéticas, mas o quanto elas podem contaminar as nossas próprias produções, ampliando os limites da poesia contemporânea.

É impressionante como o Brasil ainda não se voltou, tirando raras e maravilhosas exceções, para as diversas riquezas culturais que o seu território abrange, como as poesias dos povos da floresta ou das tradições afrobrasileiras. Considero que um dos motivos para isso foi o triunfo dos escritores da geração de 1930, uma segunda geração modernista que substituiu o interesse da primeira geração pelo "Brasil profundo" por uma dicção urbana e cotidiana, criando a mais influente linhagem poética do século XX.

Voltando a Stela do Patrocínio, disse a Viviane que tinha todo o interesse no livro, mas que gostaria de ler os poemas antes de confirmar a publicação. Preocupava-me que eles tivessem mais valor por um interesse social do que literário. Não me apraz a corrente culturalista, que trabalha num viés social da literatura, de forma muitas vezes permissiva e até paternalista. Não era o caso. Stela é uma poeta com uma voz própria e impressionante, capaz de poemas como "você está me comendo tanto pelos olhos/ que eu já não tenho de onde tirar forças/ para te alimentar". Em menos de dois meses o livro "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome" estava nas ruas.

Escrevo isso para falar que a questão principal que vejo na relação da literatura com a loucura é o quanto esses criadores podem conceber textos fora dos nossos padrões estabelecidos, permitindo descobertas e contaminações. Mas me preocupa que o termo "loucura" se faça muito presente. Certa vez, o poeta e antropólogo Antonio Risério disse que discordava do termo "etnopoesia", que não faz sentido "carregar essa corcunda taxonômica imposta pela erudição ocidental. Um poeta ocidental literário é um poeta e um poeta iourbano ou araweté tem que ser um etnopoeta?". O mesmo se coloca aqui. É claro que não serei eu a dizer que não importa o que o autor é. E a inserção social e cultural dos "loucos" e "marginais" é sempre bem-vinda. Mas espero que o termo "loucura" não venha nunca a eclipsar "literatura".

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SERGIO COHN é poeta e editor da Azougue.

2 comentários:

Ana Letícia Leal disse...

Obrigada, Ana! Estou aguardando o resto... Olha só: se o Rodrigo estava tentando publicar o primeiro livro desde os 27 anos, significa que ele demorou mais de dez anos pra conseguir...???!!! É bom ler isso, pois meu segundo livro está difícil de sair... E ainda dizem que infanto-juvenil é fácil...

Ana Cristina Melo disse...

Oi, Ana.
Está demorando para sair os textos, pois a semana está "a" semana. Estou passando o relógio no rolo de macarrão para ver se estica as horas. rsrsrs

Até sexta publico o final da matéria.

Tem frases que são capazes de fazer uma revolução, não é? Mas não desanima. Nada em literatura é fácil. Nem escrever, nem publicar, muito menos pescar os leitores. :)

Mas você já está mil passos a frente. Toda vez que desanimar, olhe para o "Meninas Inventadas" e pense nas alegrias que ele já te deu.

Beijos