terça-feira, 18 de agosto de 2009

Pílulas do caderno Mais! da Folha de São Paulo (#1)

Matéria que saiu no último domingo (dia 16/08/2009).



A ascensão das Oficinas Literárias

Cresce a procura no país por cursos que ensinam técnicas narrativas; no Rio Grande do Sul, programas tradicionais já produziram uma nova geração de escritores com "diploma de autor"

Por Ernane Guimarães Neto

O Brasil vive a emergência de um movimento literário: o dos escritores com diploma de autor. Centros culturais com lotação esgotada e professores particulares com fila de espera caracterizam a vicejante versão brasileira da disciplina "creative writing" (escrita criativa) das universidades norte-americanas. Os resultados são semelhantes: escritores reconhecidos pela crítica e premiados nos concursos de literatura.

A Casa do Saber é uma das escolas que aderiram recentemente às oficinas de escrita criativa: as aulas começaram neste ano. Segundo o diretor Mario Vitor Santos, a escola abriu uma exceção à regra de não oferecer cursos práticos depois de discutir a proposta da professora Noemi Jaffe.

A Casa das Rosas, em São Paulo, tem suas aulas práticas lotadas. Para o poeta Frederico Barbosa, diretor dessa instituição mantida pelo Estado, a meia dúzia de oficinas acontecendo em agosto e setembro, com 30 vagas cada uma, não esgota a demanda.

Uma das atrações do período é Marcelino Freire, que mantém outra oficina em São Paulo (no espaço Barco) e recebe convites para encontros em todo o país. Marcelino foi aluno de Raimundo Carrero, pioneiro na prática em Pernambuco.

Carrero começou suas oficinas nos anos 80, trazendo para o Brasil sua experiência na Universidade de Iowa. "Até meus romances escrevo com meus alunos", relata. Para profissionais como ele, a oficina ultrapassa o clichê de que o professor aprende com os alunos; todos aprendem praticamente juntos.

No Brasil, imagens como um funcionário público Machado de Assis, um diplomata Guimarães Rosa ou um jornalista Nelson Rodrigues estimulam a pensar no escritor como uma figura excepcional surgida ou sustentada em outras classes profissionais. A vivência pessoal dispensou a programação técnica.

O artista temeria o cerceamento de sua criatividade, o choque entre tradição e vanguarda, a profissionalização. Nos EUA, o choque já aconteceu e discute-se quanto a literatura do pós-guerra é marcada pelos programas universitários (leia entrevista 'O modelo americano' que publicarei num próximo post). A classe dos escritores com diploma já domina entre os laureados com o Pulitzer, por exemplo (leia quadro abaixo).

Rasuras

Para o sociólogo Sergio Miceli, os cursos livres aparecem como um sistema paralelo, a partir da crescente quantidade de pessoas com títulos que não estão incluídas no sistema de produção cultural. Os intelectuais "tentam ensinar em cursos de grã-finos semiletrados, que procuram assuntos considerados nobres; o professor se sente valorizado porque ganha um dinheiro que demoraria muito para ganhar de outro jeito. A lógica disso é um pouco esquisita, pois é uma tentativa abreviada de transferir um sistema complicado de conhecimento".

Mas exemplos como o do Prêmio São Paulo de Literatura, concedido no início do mês, apelam em favor da "tecnicização". O prêmio principal ficou com o cearense Ronaldo Correia de Brito, médico -- profissão de escritor "à moda antiga". O autor estreante premiado foi o gaúcho Altair Martins, mestre em letras com experiência em ministrar oficinas.

O escritor mais celebrado no ano passado, Cristovão Tezza, é linguista e autor do livro didático "Oficina de Texto" -- "que não é de criação estética", adverte. Tezza não pratica as oficinas de escrita criativa, mas pode ser considerado beneficiado por um treinamento especializado nas letras. "Rejeito a ideia do escritor como 'profissionalizável'. Mas, pensando friamente, de uns 20 anos para cá a literatura se aproximou bastante da universidade".

Uma das críticas feitas a escritores associados à academia é a de que se distanciam da realidade. Frederico Barbosa questiona a afirmação, mas apresenta outro problema. "Tezza escreveu uma tese sobre Bakhtin, mas sua obra não é distante da realidade. Milton Hatoum é um estudioso, mas sua obra não é acadêmica no sentido de 'chata'. O problema na academia é que há uma tendência a conflitos serem apaziguados: 'Não vou falar mal do sujeito porque ele pode estar depois na minha banca.'"

Diploma de autor

O escritor Evandro Affonso Ferreira teve em julho sua primeira experiência como professor de ficção, na Casa das Rosas. "Você não constrói um artista", diz à reportagem, mantendo a aura dos escritores. "O curso é um exercício de leitura, dá caminhos".

O ataque mais comum à oficina a reduz a nada mais do que um trabalho que todo intelectual já deveria fazer em casa: ler. Na pior das hipóteses, é vista como uma sessão de ajuda mútua pautada por elogios superficiais entre os alunos.

Charles Kiefer, que leciona escrita criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, diz que na academia a crítica ao texto alheio é rigorosa. "Não sou pago para ser hipócrita."

A PUC-RS, que mantém oficinas há mais de 20 anos, abriu em 2006 o eixo da escrita criativa na graduação. As turmas tiveram de ser ampliadas para dar conta da demanda. O professor Luiz Antonio de Assis Brasil, que comemora também a criação do mestrado no tema, integra com Kiefer o que pode ser visto como o atual centro nervoso das oficinas de escrita gaúchas, das quais saíram nomes como Cíntia Moscovich, Daniel Galera e Michel Laub.

Kiefer mantém uma das mais procuradas oficinas de escrita do Brasil."Tenho mais de 1.200 pessoas na lista de espera", diz. E conjectura: "A internet é que está gerando a demanda enorme no Brasil. Todo mundo tem blog, todo mundo escreve, mas uma hora se dá conta de que precisa estudar, avançar".

"A formação do escritor inclui ler muito, conhecer a crítica e, podendo, fazer um curso de escrita", diz Assis Brasil. Para ele, editores consideram esse item na biografia do autor quando apreciam originais.

O músico, editor e autor premiado com o Jabuti de ficção Arthur Nestrovski estudou música e letras em Iowa e não participou das célebres oficinas de escrita daquela universidade, mas declara ter visto uma "convivência rica, produtiva" entre as comunidades de teoria e prática. Ele diz duvidar de que tais diplomas tenham poder de convencimento sobre o mercado brasileiro de publicação.

Veterano das oficinas, o crítico Silviano Santiago afirma que a universidade brasileira não está preparada para diplomas de graduação em escrita. "Que concurso você poderá prestar com um diploma desses?"

No fim da história, todas as personagens se obrigam a concordar que escola não faz gênio, mas pode desenvolver pessoas interessadas. Cabe ao aluno escolher o professor.


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Modelos alternativos de escritores

O Prêmio Nobel de Literatura e o Pulitzer de Ficção apresentam neste século perfis diferentes de laureados; os americanos privilegiam "diploma de autor"

ENTENDA A CLASSIFICAÇÃO

(1) Típico escritor da era das oficinas de texto: tem formação ou longa prática em programas de escrita criativa

(2) Escritor com treinamento formal em letras -- tradutor, linguista ou crítico literário

(3) Escritor que tem outra profissão ou vivia de "bicos" antes do sucesso -- médico, músico, jornalista etc.

Prêmio Nobel de Literatura (escolhido pelo conjunto da obra)

2001: V.S. Naipaul

Nasceu em Trinidad e Tobago em 1932. Não fez sucesso como aluno de literatura em Oxford, viajou pelo mundo como jornalista e teve êxito como escritor antes dos 30

2002: Imre Kertész

Autodidata, o húngaro (1929) fez traduções e matérias jornalísticas antes de ser reconhecido com o livro "Sem Destino"

2003: J.M.Coetzee

O sul-africano (1940) estudou inglês e matemática na Universidade da Cidade do Cabo e fez pós-graduação em letras na Universidade do Texas

2004: Elfriede Jelinek

A poeta austríaca (1946) formou-se em teatro e história da arte, mas sua principal formação foi em música: tem o diploma de organista pelo Conservatório de Viena

2005: Harold Pinter

O dramaturgo britânico (1930-2008) estudou na Academia Real de Arte Dramática e na Escola Central de Oratória e Drama, da Universidade de Londres

2006: Orhan Pamuk

Nascido em Istambul em 1952, estudou arquitetura, jornalismo e participou do programa de formação de escritores da Universidade de Iowa

2007: Doris Lessing

A britânica (1919) estudou até os 14 anos. Entre outros empregos, foi jornalista antes de ser reconhecida como escritora

2008: Jean-Marie Gustave Le Clézio

Nascido na França, Le Clézio (1940) estudou letras no Reino Unido e na França. Tornou-se professor universitário.

2009: Ainda não foi anunciado o vencedor

Prêmio Pulitzer de Ficção (selecionado entre os lançamentos do ano)

2001: Michael Chabon

Pós-graduado em escrita criativa pela Universidade da Califórnia, Chabon (1963) fez sucesso com livros como "Usina de Sonhos"

2002: Richard Russo

Doutor em literatura pela Universidade do Arizona, Russo (1949) tornou-se professor de letras

2003: Jeffrey Eugenides

Nascido em 1960, formou-se na Universidade Brown, e fez mestrado em inglês e escrita criativa na Stanford

2004: Edward P. Jones

O autor (1950) fez mestrado em escrita criativa na Universidade da Virgínia e é professor da matéria

2005: Marilynne Robinson

Robinson (1947) concluiu doutorado em inglês enquanto escrevia seu primeiro sucesso, "Housekeeping", de 1980. Tornou-se professora da Oficina de Escritores de Iowa

2006: Geraldine Brooks

A australiana (1955) fez carreira como repórter em jornais como "Sydney Morning Herald" e "The Wall Street Journal"

2007: Cormac McCarthy

O romancista (1933) não completou o ensino superior. Integrou a Força Aérea dos EUA, foi radialista e fez sucesso desde o início da carreira

2008: Junot Díaz

Díaz (1968) escreveu sua primeira coletânea durante o mestrado em escrita criativa na Universidade Cornell. Leciona escrita no MIT

2009: Elizabeth Strout

Nascida em 1956, formou-se em letras na Faculdade Bates (Maine). Leciona escrita criativa na Universidade Queens em Charlotte, Carolina do Norte

5 comentários:

Fatima Cristina disse...

Oi Ana,

Elfriede Jelinek tem uma personalidade muito estranha. Nem na entrega do prêmio nobel ela foi, pois alegou que prefere se esquivar de lugares muito cheios de gente... Pode?

Beijos!

Fatima Cristina disse...

Agora meu comentário sobre as oficinas literárias...

Concordo com Assis Brasil, quando ele diz que: "A formação do escritor inclui ler muito, conhecer a crítica e, podendo, fazer um curso de escrita". Nesse caso as oficinas ajudam, mas no fundo depende sempre do desempenho do autor, diplomado ou não!

Beijos.

Ana Cristina Melo disse...

Oi, Fatima!

Acho que alguns escritores têm uma personalidade muito estranha. rsrs

No caso dela pode ser até um problema de síndrome de pânico, mas ocorre mais casos do que era esperado. Veja o Luandino Vieira que rejeitou o Prêmio Camões. E até Jean-Paul Sartre já recusou o Nobel. :)

Ana Cristina Melo disse...

Na correria do post, esqueci de colocar minha opinião.

Não acho que possa haver "diploma de autor", mas um curso que dê o estímulo. Há muitos bons escritores que apenas estão crus, e encontrarão em algumas oficinas a lapidação necessária em seus textos.

Além de um outro benefício: ser lido. Um escritor iniciante não pode submeter seus textos somente aos amigos e familiares. Precisa ser lido por "olhos mais críticos", que estão na área, sabendo o que diz. E uma oficina prática é uma ótima forma de conseguir isso, sem que ninguém fique constrangido com o pedido para ler seu texto.

É por isso que hoje em dia eu tenho o meu personal crítico literário. rsrsrsrs

E sem sombra de dúvida: ler muito, sempre.

Fatima Cristina disse...

"Ler muito sempre!" Esta é a receita para o sucesso!

Adorei sua série de posts sobre oficinas.

Beijos!