terça-feira, 25 de novembro de 2008

Pescador de leitores

Eu tenho uma tendência de me emocionar mais com os pequenos gestos do que com os grandes.

Essa semana eu ia de carro para lecionar à noite, encarando o que restou do dilúvio que caiu no Rio, quando um rapaz de rua parou para pedir na janela do carro à frente. Foi involuntário, mas logo verifiquei as trancas e o vidro bem fechado. Atenta aos seus movimentos, logo percebi que ele tremia de frio, suportando o vento que devia cortar lá fora. Pés descalços, corpo sujo, não sei se ele pediu ou se adivinharam, mas de dentro do carro saiu para suas mãos meia tangerina descascada. Ele continuou a conversar e apertar os braços que tremiam. Devia contar do frio que estava passando ou um resumo da sua vida. O sinal abriu e ele se embrenhou entre os carros para longe dali. Fiquei sem reação. O que antes era medo, virou piedade, ternura, ou até vergonha dos meus pensamentos. Na realidade, minha melhor ou pior reação naquele momento foram as lágrimas que queimaram meus olhos. A vontade de ter um tempo a mais e fazer algo. De talvez poder trazer-lhe um agasalho, uma palavra de conforto, de poder lhe oferecer um destino melhor do que aqueles pés descalços, sujos, e o corpo sofrido de fome e de frio. Não devia ter mais do que vinte anos aquele menino.

O primeiro conto com o qual ganhei um concurso literário falava sobre semear esperança, em forma de educação. A Literatura precisa mostrar, instigar, incomodar os que ainda não olharam para os lados. Mas não dá mais para esperar que o outro faça alguma coisa, de forma concreta. Nossos vidros continuarão fechados, pois a violência da nossa cidade nos impõe a isto. Mas é hora de abrirmos mais nossos corações, aos pouquinhos, aos que necessitam. Não esperarmos que eles venham aos nossos vidros, mas que nós nos precipitemos até eles.

Precisamos vender sonhos. Sem cobrar por isso. Pequenos pedaços de esperança para os que não têm nenhuma.

E falando de sonhos, e de pequenos grandes atos, recebi hoje do PublishNews um texto do Galeno Amorim, que reproduzo na íntegra. Maravilhoso. Não fala dessa pobreza que descrevi, mas da riqueza de quem reconhece a importância dos livros, do saber. E faz o seu pouquinho.

Pescador de leitores
Publishnews - 25/11/2008 - por Galeno Amorim, da Agência Brasil Que Lê

O dia ainda não amanheceu quando seu Joaquim faz as primeiras manobras para estacionar a velha carroça diante da casa número 1.135 da Avenida Benjamin Constant. A vizinhança dorme o sono dos justos. São pontualmente cinco horas da manhã. Com todo cuidado, que é para não fazer barulho – que barulho, como ensinou o poeta, de nada resolve –, ele inicia o ritual que repete com fervor quase religioso nos últimos anos. O dono da casa o ajuda a empilhar, zelosamente, as sete caixas. O animal se assusta e ameaça relinchar. Mas o homem, que não quer saber de vizinhos acordando a essa hora da madrugada, sussurra alguma coisa que aquieta o bicho. No pouco espaço que resta na carroça, agora ele ajeita duas estantes de aço. Como quem sabe o que faz, o carroceiro ruma à direção do estádio, palco de gloriosas partidas do campeonato de futebol amador de Pirapora, no Alto do Rio São Francisco, interior de Minas. Mas não é este seu destino final. Minutos mais tarde, freia bruscamente o carro de tração-animal no meio da via pública. Apesar da hora, já há por ali um forte burburinho.

Homens e mulheres montam, sem perda de tempo, as barracas. Ajeitam, nas bancas, dúzias de tomates, laranjas e outras frutas frescas colhidas na véspera. A carga misteriosa é descarregada com cuidado e posta no chão. Perto dali, o cheiro que exala dos isopores de pescados impregna o amanhecer. Léo do Peixe está radiante. Tira do bolso duas notas de dez reais e paga o carreto. Domingo, afinal, é dia de feira livre no Santos Dumont, bairro de classe média baixa onde ele vive há anos. Nos dias de semana, Leonardo da Piedade Diniz Filho pesca e vende em casa os peixes que há 18 anos retira nas águas do Velho Chico. No domingo, faz a feira. Ao lado da barraca de peixes, a esposa monta sua barraca de roupas infantis. Quando as caixas são abertas, uma surpresa: não há nada ali que possa ser vendido nas duas bancas!

Mesmo assim, eles estão felizes. E o que tem lá dentro? Livros! São livros para leitores de todas as idades. Quando clarear o dia, mais uma vez eles estarão lá fazendo fila diante da inusitada barraca para, em vez de verduras ou frutas, enfiar na sacola uma outra categoria de alimento – esse, alimento para a alma. Lobato, Machado, Eça, Coelho, não importam os autores. Muitos vão lá só pelo simples prazer de acariciar as obras. Uns lêem lá mesmo, outros levam para casa e devolvem na outra semana. Cada um leva o que quer e, se não terminou de ler, também não tem problema: o prazo é prorrogado. Não há burocracia e também não paga.

É simples assim o Clube de Leitura de Pirapora, que começou por causa do medo de Léo do Peixe de ver os filhos de pais tão ocupados se afastarem aos poucos dos livros. Logo os filhos dos outros feirantes apareceram e, hoje em dia, já são 400 sócios – pelo menos 80 aparecem a cada domingo. Muita gente vai à feira só para pegar livros. O movimento cresceu tanto que o pescador precisou até contratar ajudantes. E como a biblioteca municipal não abre nos finais de semana, o clube agora é uma referência na cidade.

Léo diz que foram os livros que mudaram sua vida. Ele gostou tanto dessa história de pescador de leitores que resolveu abrir mais sete pontos de leitura pela cidade. Pra quem pergunta por que faz isso, Léo do Peixe tem a resposta na ponta da língua: “Quem não lê é um cidadão de segunda classe... (Agência Brasil Que Lê)
Galeno Amorim (www.blogdogaleno.com.br) é jornalista e escritor.

Fonte: PublishNews

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo conto. Muito prazeroso sua leitura. O enredo é interessantíssimo. As imagens que a leitura deste conto, de linguagem simples, porém vivaz,traz, é sublime. Ele transporta o leitor para dentro da história. Parabéns mais uma vez.

Ana Cristina Melo disse...

Obrigada, Jorge.

A web é maravilhosa por isso, por trazer essa aproximação que de outra forma seria impensável.

É muito bom ouvir outras vozes a respeito dos nossos textos.

Vou dar uma passadinha no seu blog.