domingo, 25 de maio de 2008

Conto "Paralelas" premiado no I Concurso Literário "Sergio Buarque de Holanda"

O conto abaixo foi meu primeiro prêmio, no I Concurso Literário "Sergio Buarque de Holanda", da Secretaria de Estado de Cultura São Carlos (SP). A premiação ocorreu em Novembro de 2005.
Espero que apreciem. Boa leitura!

Paralelas
Ana Cristina Melo

Na estrada, Rosaléia. Sua companhia apenas a lua, se despedindo, e os bichos do mato. Acorda às quatro da manhã. Mal tem o que tomar café. Sai em seguida. A caminhada é longa: seis quilômetros. Às vezes passa conhecido, que dá carona no lombo de uma égua. Mas coitada dela (da égua). É trecho pesado para a pobre carregar dois nas costas. Destino: a grande casa de taipa na Fazenda Boi Manso, onde leciona aos filhos do dono e dos seus colonos. A aula começa às sete.

Na estrada, Mariléia. Sua companhia apenas os bêbados, drogados e mendigos, que se perderam na madrugada, se perderam na vida. A lua está encoberta pelo nevoeiro. Ou será pela poluição? Animais pelo caminho, só os vira-latas. Acorda às quatro da manhã. Mal consegue tomar café. Sai em seguida. A caminhada até o ponto de ônibus é longa: dois quilômetros. De lá, são mais duas conduções. Ambas lotadas. Não há espaço para respirar. A vida pára dentro dessas lotações. Vinte e dois quilômetros ao todo. Destino: a escola pública Chão de Estrelas no centro da Capital, onde leciona aos alunos da região. A aula começa às sete.

Rosaléia chega à sua classe de alfabetização. Vinte e dois rostinhos dividindo esperanças e as mesmas carteiras. Amontoam-se como milho no paiol. Não há mais do que sete anos em cada um. Entre eles, destacam-se os filhos do dono – melhor vestidos, com melhor história. Mas é a única diferença. Ou talvez nenhuma. Para Tia Rosa é uma característica qualquer como a cor dos olhos, sexo ou altura. São todas crianças. Todas anjinhos. Todas um faixo de esperança.

Mariléia chega à sua classe de alfabetização. Vinte e dois rostinhos dividindo esperanças. Cada qual na sua pequena mesinha, mas tão coladas umas nas outras, que quase formam uma só. Não há mais do que sete anos em cada um. Entre eles, destacam-se os filhos da classe média, em situação de desemprego – melhor vestidos, com melhor história. Mas é a única diferença. Ou talvez nenhuma. Para Tia Mari é uma característica qualquer como a cor dos olhos, sexo ou altura. São todas crianças. Todas anjinhos. Todas um faixo de esperança.

Rosaléia pega o seu cotoco de giz. Tem que durar o dia. Separou um para cada dois dias. Já pediu ao dono da Fazenda, mas ainda não chegou nova caixa. Ali tudo é longe: as notícias, os produtos, a esperança. Mas um dia chega. Cabe a ela fazer-lhes esquecer, nesse momento, a dura realidade que vivem. Muitos estão descalços, cadernos doados, barriga vazia. São filhos de trabalhadores rurais, que lutam de sol a sol, sem muitas vezes conseguir completar a panela de comida. Tia Rosa divide o giz. Eles dividem a vida. São elite aqueles que possuem plantação no quintal. Pelo menos, tem o que comer.

Mariléia pega o seu cotoco de giz. Tem que durar o dia. Separou um para cada dois dias. Já pediu à Diretora, mas ainda não chegou nova caixa. Ali tudo é difícil: a modernização, os produtos, a esperança. Mas um dia chega. Cabe a ela fazer-lhes esquecer, nesse momento, a dura realidade que vivem. Muitos estão com sapatos furados, remendados, rasgados, doados. Só não estão descalços, pois têm que cumprir o uniforme: não podem entrar sem sapatos. Onde já se viu estudar descalço! Cadernos doados, barriga vazia. São filhos de desempregados, subempregados, desvalorizados, que lutam de sol a sol, sem muitas vezes conseguir completar a panela de comida. Tia Mari divide o giz. Eles dividem a vida. São elite aqueles que conseguem se virar. Pelo menos, em ter o que comer.

Tia Rosa não passa dever de casa. Sabe que dali, com algumas exceções, todos vão para a lavoura. Levantam enxadas, carregam fardos. Mas Rosaléia não ensina letras, ensina sonhos. Recusa-se a criar analfabetos funcionais. Faz cartazes, jograis, teatro. Traz a vida para a sala de aula.

Tia Mari não passa dever de casa. Sabe que dali, com algumas exceções, todos vão trabalhar, de uma forma ou de outra. Seja em casa tomando conta de irmãos, tão indefesos quanto eles; seja na rua a vender balas nos sinais ou até pedindo esmolas. Levantam bolinhas, espanadores, carregam fardos. Mas Mariléia não ensina letras, ensina sonhos. Recusa-se a criar analfabetos funcionais. Faz cartazes, jograis, teatro. Traz a vida para a sala de aula.

Rosaléia está no sertão. Ouviu falar de bolsa social, mas ali não chegou. Não para as suas crianças. Já ouviu falar de quem não precisa, que conseguiu. Enquanto isso, faz o social de dividir o pouco que tem: seu conhecimento. Suas crianças são brasileiras. É a cara do Brasil. Dali sairão cidadãos.

Mariléia está na cidade grande. Ouviu falar de bolsa social, mas ali não chegou. Não para as suas crianças. Já ouviu falar de quem não precisa, que conseguiu. Enquanto isso, faz o social de dividir o pouco que tem: seu conhecimento. Suas crianças são brasileiras. É a cara do Brasil. Dali sairão cidadãos.

Rosaléia e Mariléia, no asfalto ou na terra batida, não ensinam letras. Ensinam sonhos.

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