Ontem ao guardar o livro do José Castello, encontrei o livro "Oficina de Roteiro de Gabriel García Márquez - Como contar um conto".
Só o título já diz tudo.
Não tenho tido tempo para reler livros por inteiro. Têm tantos livros novos me esperando na estante, que é complicado dividir-me entre todos.
Mas de vez em quando gosto de pegar um livro, reler um trecho ou as minhas anotações/marcações. Se for um romance, leio alguns parágrafos novamente. Se for uma coletânea de contos, releio esse conto. A vista sempre volta naqueles em que eu marquei "excelente", "gostei muito", etc. Mas deveria voltar naqueles em que não coloquei nada. Talvez uma segunda leitura (ou terceira, ou quarta) mudem meu ponto-de-vista.
Bem, hoje pela manhã, meu alvo foi esse livro do García Márquez. Um livro de fazer literário. O material é a transcrição de aulas de oficina de roteiros, na qual os trabalhos dos alunos são discutidos em detalhes.
Divido com vocês alguns trechos que havia marcado de um primeiro roteiro do livro. Lembro que o grifo é meu.
"Logo de saída, cortamos a cena do banho. Morri de pena. É bonito alguém tomando banho. Poderíamos ter conservado aquela cena. Na verdade, é muito difícil encontrar uma história que não seja parecida, de uma forma ou de outra, há muitas histórias conhecidas. Acabamos eliminando a tal cena.
A realidade, aliás, estendeu outra armadilha para mim, quando eu estava escrevendo O Outono do Patriarca. Eu havia imaginado um atentado que não parecia nenhum dos atentados habituais: colocavam uma carga de dinamite no porta-malas de um automóvel. A mulher do ditador apanhava o carro para ir fazer compras, e no caminho o automóvel explodia e ela ia parar no telhado do mercado. Fiquei tranqüilo com a imagem do carro voando pelos ares porque, francamente, achei que era muito original. Pois não é que, três ou quatro meses mais tarde, fazem um atentado exatamente igual, contra o almirante Carrero Blanco, na Espanha? Fiquei furioso. Todo mundo sabia que eu estava escrevendo a história em Barcelona, e naquela mesma época; ninguém iria acreditar que eu tinha tido a mesma idéia muito antes. O jeito foi inventar um atentado completamente diferente: levam ao mercado alguns cachorros sanguinários, especialmente treinados, e quando a mulher do ditador chega, os cães se lançam em cima dela e a despedaçam. Depois, fiquei contente por terem estropiado o atentado do automóvel. Até hoje fico alegre com isso. O dos cães é mais original ainda, e está mais dentro do espírito do meu livro. Eu até acho que não devemos nos preocupar muito com isso: se uma cena não funciona ou cai, o que se há de fazer? Procurar outra. O curioso é que, na maior parte das vezes, a gente acaba encontrando outra melhor. Se tivéssemos ficado com a primeira, teríamos perdido. O problema é mais sério quando a gente encontra, logo de saída, a melhor. Aí sim, não tem jeito. Mas, como saber? É a mesma coisa que descobrir se a sopa ficou pronta. Ninguém pode saber, a não ser provando. Mas voltando às semelhanças, não devemos deixar que elas nos assustem, desde que não se relacionem com aspectos essenciais da história. Porque a verdade é que existem histórias muito diferentes e que, no entanto, têm muitas coisas em comum.
É preciso aprender a jogar fora. A gente conhece um bom escritor não tanto pelo que ele publica, mas pelo que joga no lixo. Os outros não ficam sabendo, mas o escritor sim: ele sabe o que joga fora, o que vai deixando de lado e o que vai aproveitando. Se o escritor se desfaz do que está escrevendo, está no bom caminho. Para escrever, o escritor tem de estar convencido de que é melhor do que Cervantes; senão acaba sendo pior do que na verdade é. É preciso apontar para o alto e tentar chegar longe. E é preciso ter critério, e coragem, é claro, para riscar o que deve ser riscado e para ouvir opiniões e refletir seriamente sobre elas. Um passo a mais, e já estaremos em condição de pôr em dúvida e submeter à prova até mesmo aquelas coisas que nos parecem boas. E tem mais: mesmo que todo mundo ache que essas coisas são realmente boas, o escritor precisa ser capaz de colocá-las em dúvida. Não é fácil. A primeira reação que tenho, quando começo a suspeitar que devo rasgar uma página, é uma reação defensiva: "Como é que vou rasgar isso, se é o que mais gosto?". Mas é preciso examinar bem e se a gente chegar à conclusão de que, realmente, não funciona dentro da história, está desajustando a estrutura, contradizendo o caráter do personagem, indo por outro caminho... bem, aí não tem jeito, é preciso rasgar mesmo. Isso dói na alma da gente... no primeiro dia. No dia seguinte, dói menos; dois dias depois, um pouco menos; três dias, menos ainda; e no quarto dia, a gente nem se lembra mais... Só é preciso tomar cuidado com a tendência a guardar em vez de rasgar, porque existe o perigo, se o material rejeitado estiver à mão, de a gente tornar a pegá-lo para ver se "cabe" em algum outro momento.
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