Hoje estive passeando pela minha estante. Estou em estado de suspensão. Terminei há um mês a última versão do meu livro de contos, que está sendo escrito há quatro anos e que está agora tentando colocar a orelha para fora da gaveta...
Sinto falta dos meus personagens. Estou com um sentimento de vazio. Uma nostalgia, quase uma desorientação.
Para dominar a ansiedade, comecei a escrever um romance, mas ainda não engrenou. Talvez porque ainda esteja embuída da atenção a cada palavra, como faço no conto, justificando sua existência. Preciso deixar a mão correr mais livre, para só depois podar. Estou também escrevendo novos contos, e guardando numa outra gaveta. Mas não sei escrever aleatoriamente. Chega num ponto que preciso achar um fio condutor que ligue todos eles. Acho que só depois que eu encontrar esse fio, vou começar a produzir com a agilidade de antes.
Hoje, meu segundo dia de férias, deveria estar teclando alucinadamente, mas não estou. Na realidade, não teclando, escrevendo, nos meus cadernos carinhosamente escolhidos (ah, papelarias, lugares mágicos!), e com a letra que se posiciona redonda com a ponta de minha lapiseira. Só depois é que vou para o Word, para cortar, colar, retirar, incluir...
Então, por que não estou escrevendo? Talvez porque esteja frio, talvez porque tenha medo de recomeçar, talvez porque sinta a espada frequente que nos obriga a fazer o melhor possível. Tenho um outro romance bem avançado na gaveta, que fiquei me perguntando se seria bom. Talvez seja tolice minha não terminá-lo. Deveria terminá-lo para depois me questionar sobre um trabalho pronto. E não começar um novo, por mais interessante que esse novo enredo me pareça.
E pensar que não tenho problemas para escrever. Faço em qualquer lugar, apesar do pouco tempo. Sou funcionária pública e trabalho, muito. Cumpro carga horária de 8 horas, fora as três horas gastas em locomoção. Sobra para mim esse tempo do transporte, a hora do almoço (que me refugio na biblioteca da ABL), os minutos antes de arrumar as crianças para a escola, os minutos antes que o sono me domine... Mas às vezes falta concentração ou inspiração para escrever em alguns desses lugares, em outras, escrevo até em verso de nota de compra, se a vontade me vier incontrolável e meu caderninho de ideias não estiver comigo. Gasto, então, esses minutos, lendo, rabiscando só as ideias, atualizando o Canastra. E no que sobra (que é muito maior), penso em literatura, respiro, imagino. Mentalmente, transformo em palavras um céu azul, um bebê sorrindo, a vida que flui sem que venhamos a lhe dar a devida atenção.
E então por que não estou escrevendo, se agora me sobra tempo? Boa pergunta. Talvez seja o excesso de assuntos para resolver: arrumar os armários, terminar a revisão do livro publicado (técnico), etc.
Talvez seja apenas medo.
Por isso, percorri minha pequena biblioteca. Tirei alguns exemplares e resolvi reler trechos que eu havia marcado. Peguei os livros e coloquei ao meu lado. Fui relendo e transcrevendo aqui, porque adoro dividir com vocês. E, então, percebi que meus olhos paravam em trechos que me pareciam respostas para perguntas que não ousei formular. Mas que estavam ali, dentro de mim.
A primeira frase que transcrevi me tocou profundamente. Traz a lembrança de menina, quando já fantasiava minha vida. Imaginava uma vida diferente da que eu tinha, mas que desejava para mim. Pensava em cada detalhe, em cada frase de algum diálogo esperado, de cada cena, como uma peça de teatro. Andava pela casa, comia, ia dormir, pensando na próxima cena, no próximo capítulo. E com isso, passava dias vivendo cada idade naquela situação. E quando chegava a idade de partir, terminava a história, ou melhor, a interrompia. Não saberia dizer como seria ir embora. E então ficava triste. Sentia que faltava um pedaço de mim, me sentia órfã. Até pensar numa nova vida. Inventar uma nova história. Primeiro comigo, depois comecei a fantasiar histórias para os outros: amigos, familiares, desconhecidos. Se Vargas Llosa estiver correto, talvez tenha sido a semente de uma vocação literária, a mesma que espero ser ratificada um dia, talvez quando se tornar realidade a última fantasia...
Então, quando acabar esse post, darei atenção a minha filha, depois, me arrumarei para prestigiar a querida Lívia Garcia-Roza que lança, hoje, seu livro “A casa que vendia elefantes” no Salão da FNLIJ. E, à noite, ou no máximo amanhã, sentarei para escrever. Qualquer coisa. Nem que seja para amassar. Ou para depois retocar, excluir, incluir, ou seja, escrever...
Então vamos aos textos...
“Se não estou errado em minha suposição (claro que tenho mais chances de estar errado do que certo), um homem ou uma mulher desenvolve precocemente, na infância ou no começo da adolescência, uma predisposição para fantasiar pessoas, situações, casos, mundos diversos do mundo em que vive, e essa inclinação é o ponto de partida do que mais tarde poderá se chamar vocação literária.(...)
Os que o fazem e se tornam criadores de mundos por meio da palavra escrita — os escritores — são uma minoria, que, àquela predisposição ou tendência somaram essa expressão da vontade que Sartre chamava de escolha. Elegeram-se como tal. Organizaram a vida para transportar para a palavra escrita essa vocação que antes se contentava em fantasiar, no território impalpável e secreto da mente, outras vidas e outros mundos.”
“A vocação literária não é um passatempo, um esporte, um lazer refinado que se pratica nas horas vagas. É uma dedicação exclusiva e excludente, uma prioridade à frente da qual nada pode passar, uma servidão livremente escolhida que transforma suas vítimas (suas ditosas vítimas) em escravos. Como no caso do meu amigo de Paris, a literatura passa a ser uma atividade permanente, algo que ocupa a existência, que extrapola as horas que alguém dedica à escrita e impregna tudo mais que se faz, pois a vocação literária se alimenta da vida do escritor exatamente como a comprida solitária se nutre dos corpos que invade. Como dizia Flaubert: “Escrever é uma maneira de viver”.
“Cartas a um jovem escritor”
Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa
“Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.
(...)
Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma.”
(...)
Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma.”
“Cartas a um jovem poeta”
Rilke
Rilke
“Não apenas as origens do texto literário são obscuras. O próprio significado deste pode ser intrigante — inclusive, e principalmente, para o próprio autor, a quem frequentemente se pergunta o que quis dizer com determinado conto, determinado poema. Como se a obra fosse um enigma do qual o escritor, e só o escritor, possui a resposta. O leitor, este, tem de sofrer; o leitor é Édipo ouvindo da esfinge literária o desafio: “Decifra-me ou te devoro”. Mas isto é um equívoco. Em relação à sua própria obra, o escritor é como alguém que tem uma ferida no dorso; a lesão está ali, ele a sente, mas não pode vê-la. E, se não tem um espelho à mão, precisa de alguém que lhe diga o que está se passando numa parte de seu corpo que é para ele quase como a face oculta da Lua.”
“Mas é isso que acontece quando a gente se deixa levar por palavras. Porque nos arrastam, as palavras. Sobretudo as pomposas.”
“Quando eu menos esperava, e num gesto quase automático, pegava uma caneta e uma folha de papel, e escrevia. Fui assim colecionando histórias que, no entanto, guardava na gaveta: aprendera a ter paciência. Ao fim de seis anos eu tinha uma coleção de textos ficcionais que representavam o melhor que eu podia fazer: se isto não é bom, eu pensava, então não sou mesmo escritor e é melhor largar esta coisa de vez.”
“De qualquer modo, a gente escreve. E aí vem a pergunta: O que fazer com aquilo que escrevemos? Guardamos, tipo diário íntimo, ou mostramos?
Melhor mostrar. Textos guardados na gaveta são perigosos. Fermentam, produzem emanações emocionalmente tóxicas que adoecem ou fazem sofrer seu autor. Agora: mostrar para quem? Isto é importante, inclusive para não encher o saco de pessoas. Pais, professores, amigos são o primeiro escalão. Depois vêm os escritores. Mostrei meus originais a vários deles. Rubem Braga perdeu a minha primeira coleção de contos (e eu não tinha cópia). Erico Veríssimo foi mais amável.”
“O texto, ou: a vida. Uma trajetória literária”
Moacyr Scliar
Moacyr Scliar
“Eu não escrevo aquilo que quero, eu escrevo aquilo que sou”.
Clarice Lispector.
Citação de “O livro entre aspas”
Citação de “O livro entre aspas”
“Convém tem disposição para limpar armários e gavetas.
Pelo menos vez-ou-outra. Ajuda a recomeçar um capítulo ou reanimar uns versos sem sangue.”
“Tem que trabalhar duro. Faça chuva ou faça sol. Trabalhar duro não significa ficar só escrevendo por horas e horas. Pensar na vida também é trabalhar. Pensar no mundo. Pensar na humanidade. Pensar nas belezas, nos desacertos, pensar até na morte da bezerra.
Pensa que é fácil?”
“Tem que reescrever um parágrafo umas quinhentas vezes. Procurar uma palavra certa durante meses. Apagar, substituir, refazer. Rasgar e embolar papéis, anos e anos a fio. Guardar alguma coisa aproveitável.
Ter obsessão pela arte o resto da vida.”
“Tem que frequentar livrarias, bibliotecas, feiras de livro, seminários, congressos e bate-papos em cafés. Brigar por um livro raro, conseguir emprestado aquele exemplar magnífico, juntar dinheiro para comprar o livro que não vê a hora de ler. Ouvir com carinho e cuidado qualquer definição de literatura.
Alguém explica a vida?”
“Tem que reler os livros de que mais gosta. Os clássicos e os novos. Reler vários trechos, em doce ou furiosa contemplação. Revisitar o desejo do protagonista. Identificar-se com esse desejo, viver desse desejo. Ajuda a entender que os melhores livros são os que permanecem dentro da gente, embora a cada dia pareçam tão novos, tão outros.”
“Tem que gostar de papelarias. Para comprar ou pelo menos namorar clipes, grampeadores, fitas adesivas, pastas de arquivo, resmas de papel, tesouras, lápis, borrachas, canetinhas de várias cores, réguas, cola-bastão, tinta para impressora, disquetes e papel para fax. Papelaria é um lugar onde sempre se encontra um escritor. Ou um estudante.
E estudante e escritor são sinônimos, entenda isso bem direitinho”
“Deixar o tempo passar. Escrever outras coisas. E ler de tudo, sempre.”
“Esses livros dentro da gente. Uma conversa com o jovem escritor”
Stela Maris Rezende
Stela Maris Rezende
Nenhum comentário:
Postar um comentário