quarta-feira, 24 de junho de 2009

Resenha: Outra vida



Rodrigo Lacerda lança hoje seu nome romance: Outra vida (convite aqui no Canastra). Por coincidência, terminei pela manhã sua leitura. Recuperando-me do impacto que esse texto me causou, escrevi a resenha abaixo, de um fôlego só, igual à leitura que fiz.

---------------------------------------------------------

Um romance que desfragmenta os papéis de um relacionamento

Comecei a ler Outra vida, de Rodrigo Lacerda, com a expectativa de leitora que ficou fascinada com seus livros anteriores. E não me decepcionei.

Pai, mãe e a filha de 5 anos esperam na rodoviária de uma grande cidade, às 7h15 da manhã. Assim começa Outra vida. A rodoviária, nesse caso, não é apenas um cenário do livro, é o limite desses personagens. Todo o romance se desenrola em pouco mais de duas horas que a família permanece ali. Esse casal, que se desfragmenta nos papéis de pai, mãe, marido e esposa, está prestes a abandonar o que construíram ou destruíram na cidade grande, para, numa quase fuga, retornar à cidade litorânea de onde vieram. Tudo para recomeçar. Um recomeço que tem significados opostos para cada um.

Aos poucos Rodrigo vai pintando o retrato de seus personagens. O retrato em si e o que é criado pelos olhos dos outros. O autor não faz julgamentos morais durante sua narrativa; nós fazemos. Julgamos (pois nos identificamos), analisamos, perdoamos (como a nós mesmos); ou não fazemos nada disso, pois é impossível tomar partido por um ou outro. Resta saber quem o leitor irá condenar: ele ou ela.

Será ele, de uma “delicadeza rude que a mulher conhece tão bem”, filho de um açougueiro e de uma mulher simples, que estará esperando por ele na cidade pequena, disposta a lhe oferecer um “amor que não pensa e que continua se declarando mesmo quando não pode ser escutado”.

Será ela, filha de uma família nobre, com conhecimentos políticos, de maneiras reservadas, acostumada ao dinheiro e ao que ele pode trazer.

Ele, o homem apaixonado, disposto a fazer todo o possível para que essa relação de classes diferentes dê certo, que aceita o emprego arranjado pela sogra, para ser o “apadrinhado periférico” de um assessor de deputado que não cansa de humilhá-lo.

Ela, que ao conhecê-lo se assustou com a atração que sentira por um homem tão simples e pacato, mas muito diferente dos outros. Tão diferente que se sentia forte ao lado dele.

Ele, que a visão da filha tão amada não o deixava esquecer da necessidade de ganhar mais dinheiro; que se viu odiando a profissão antes desejada, ao conhecer as manobras políticas dentro do serviço público.

Ela, que se questiona “de que adianta ser bonita e bem-educada numa vida pé-de-chinelo”; que “sonha ser o oposto das pessoas que voltam a suas cidadezinhas”.

Ele, pai, “vagaroso, acostumado a ceder sua vez aos outros, a não brigar por medo de que o acusassem de covarde”, e que se vê tentado a aceitar o suborno, justificando a gravidade do seu ato, pois “o bem público não haveria de ser lesado” e a “recompensa viria dos cofres do fornecedor, não do dinheiro público”; que se viu tendo “dinheiro para levar uma vida de pobre, ficando mais com a filha na hora que bem entendesse” e ainda podendo “pagar a aposentadoria dos pais”.

Ela, mãe, que sente uma ponta de inveja ou de culpa quando vê uma mãe humilde e seu bebê de colo se amarem “com tanta placidez, enquanto balançam seus corpos”; que lamenta que a ruptura acontecida logo após o parto nunca tenha sido recuperada; que não aceita o marido ter confessado o suborno e devolvido o dinheiro, e com isso ter que largar o apartamento alugado que fez questão de reformar, o emprego de vendedora, promovida a subgerente, que conseguira depois de ser exclusivamente mãe por dois anos; que fica tentada a aceitar a proposta do amante e ouvir o conselho da mãe que a incentiva a ficar e lutar por seus sonhos.

Não há nomes de personagens, nem localizações geográficas explícitas. Mas não são necessários, pois os pensamentos de cada um são a força da narrativa de Rodrigo Lacerda, o mesmo escritor que ganhou diversos prêmios, com obras marcantes como: “O mistério do leão rampante” e “O fazedor de velhos”.

Mas se fosse somente isso, já teríamos um ótimo romance. Contudo, incansável na busca pela perfeição, o autor ainda nos oferece um romance que vai entrecortando o presente com as marcas que foram moldando esse homem e essa mulher, na infância e no casamento, até que o quebra-cabeça desse relacionamento esteja montado. Enquanto o relógio de quatro faces da rodoviária marca a passagem do tempo, agindo muito mais como uma ampulheta, vamos, ora com o marido, ora com a esposa, ou até mesmo com a filha, relembrando os momentos que levaram essa família até aquele ponto. Entendendo como eles chegaram até ali e porque necessitam partir.

Um conjunto que se traduz não menos do que num excelente romance, um romance que vai nos tocando e modificando a cada parágrafo. Que vai remexendo com nossas convicções, nossos sentimentos. Ou seja, vai nos presenteando com uma literatura pura, da melhor qualidade.

Nenhum comentário: