Fonte: Caderno Prosa & Verso (O Globo). Sábado (27/06/2009)
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# "Escrever é como sonhar"
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Por Fernando Duarte (correspondente em Londres)
* Autora irlandesa, que já teve livros queimados, diz que mulheres ainda sofrem como artistas
>>> Entrevista - Edna O'Brien. Em termos de retornos triunfais, poucas pessoas podem se gabar tanto quanto Edna O'Brien, que no início de maio desfilou pelo salão principal do Mansion House, um dos hotéis mais requintados de Dublin, para receber um prêmio especial na categoria conjunto da obra durante a cerimônia do Irish Book Awards. Apenas o fato de fazer parte dos comes e bebes da maior honraria literária irlandesa já seria significativo para um escritora que, nos anos 1960, viu uma recepção medieval para sua prosa ousada na descrição de sentimentos e sensações femininas — com direito à queima de seus livros em praça pública e à censura oficial das autoridades. Sem olhar para trás, porém, Edna O'Brien seguiu em frente, aventurando-se também pela poesia e pela pesquisa biográfica — ela é autora de dois aclamados livros, um sobre o conterrâneo James Joyce e outro sobre o poeta ingles Lord Byron. Em entrevista ao GLOBO, Edna — hoje com 78 anos — uma das convidadas internacionais da Flip 2009, reflete sobre as agruras do passado e sobre os desafios ainda à frente de escritoras. Entre eles, o de deixar a redoma feminina. "O melhor artista é andrógino", afirma ela, cujo livro "A luz da noite", com tintas autobiográficas, está sendo lançado na Flip pela Record. "Byron apaixonado" sairá em setembro pela Bertrand Brasil.
O GLOBO: Em 2009, a senhora recebeu uma série de prêmios na Irlanda, incluindo a mais importante honraria literária do país. Uma grande mudança de maré, não?
O'BRIEN: Fiquei feliz em receber o prêmio em Dublin em maio, até porque ele foi entregue por Seamus Heaney, um Prêmio Nobel de Literatura! Certamente foi uma mudança de maré, pois meus sete primeiros livros foram proibidos pelos censores na Irlanda e meu romance de estreia, "Garotas do campo", teve cópias queimadas até na paróquia onde cresci. Por sinal, uma grande humilhação para minha mãe. O livro também foi considerado pela Igreja Católica e pelo governo como um desprezo à feminilidade irlandesa. Mas isso foi em 1960 e as atitudes em relação à literatura mudaram no mundo todo e na Irlanda. Os irlandeses não banem mais livros e eu só espero que os mais jovens aproveitem para ler tanto quanto eu lia. Ler grandes trabalhos é o pão e manteiga espiritual.
O GLOBO: A senhora também ficou famosa pelo estudo sobre James Joyce, mostrando o conturbado casamento de um escritor que também teve uma reputação de maldito na Irlanda. Isso fez parte de suas motivações para este trabalho?
O'BRIEN: Meu livro não era especificamente sobre o casamento de Joyce, embora sua companheira Nora Barnacle tenha sido crucial na vida dele. Meu maior interesse era Joyce como um escritor, pois ele é muito importante para um mundo de escritores, e mais especificamente para escritores irlandeses. Ele está no topo da montanha, e outros o seguem, motivados por sua linguagem. Foi como disse no meu livro quando falo sobre "Ulisses": a linguagem é herói e heroína, em fluxo constante e virtuosidade estonteante. Em comparação com "Ulisses", a maioria de outros trabalhos de ficção é puramente pusilânime.
* Para alguém tão interessada em assuntos femininos, o quão decepcionante é ver a mulher ainda objetificada?
EDNA: Mulheres ainda sofrem como artistas, o que é fruto do histórico domínio masculino. Escritoras como Emily Brönte e George Elliot tiveram que escrever com pseudônimos masculinos. As mulheres precisam sair de baixo desse imenso e feio guarda-chuva de preconceito. Mas elas conseguem e continuarão conseguindo. Podemos não ganhar tantos prêmios como os homens agora, mas isso vai mudar. É importante, porém, que escritoras não se prendam a assuntos femininos. O melhor artista é andrógino no que diz respeito ao trabalho. Também não creio que seja necessário ficarmos doutrinando os leitores, por mais que o contingente feminino de meus críticos reclame.
* A senhora se sentiu ofendida com algumas das reações públicas sobre sua exposição de sentimentos e dilemas?
EDNA: Sim, a reação me deixou estupefata. Fico imaginando o que essa mesma turma teria dito de Emma Bovary ou Anna Karenina. Sentimentos são o motor da criatividade. O que amamos num romance, num conto ou num drama é a interação e o conflito entre seres humanos, o amor, o ódio e a traição. Tudo isso não é alterado pela moda, ou pela grosseira noção de que sentimentos são demodé.
* Sem querer estragar a surpresa, a senhora poderia falar um pouco mais sobre sua participação na Flip?
EDNA: Decidi não participar mais da mesa-redonda sobre transgressão em Paraty. Decidi que quero abrir o debate para outras coisas como a noção de terra natal, os dilemas religiosos e culturais, bem como o amor e o não amor.
* Outro aspecto interessante do trabalho da senhora é a versatilidade de plataformas. O que a faz pular de uma trilogia como "Garotas do campo" para uma biografia de Lord Byron, seu próximo livro a ser lançado no Brasil ("Byron apaixonado", que sairá em setembro pela Bertrand)?
EDNA: Acho que é fruto da minha própria instabilidade. Adoro poesia, teatro e ficção. O que odeio é texto de segunda classe ou megalomania literária, bem como a falta de reverência à palavra.
* Qual a sua relação com Byron, outra figura polêmica?
EDNA: Meu interesse nele vem desde os tempos de escola. Sempre amei "Na véspera de Waterloo". Escrever um livro sobre ele foi ainda mais difícil do que imaginava: a pesquisa foi vasta e filtrar todos os dados provou ser complexo. Em apenas 36 anos de vida, Byron viveu várias vidas, todas elas dramáticas. Ele era bonito e deformado, sério e engraçado. Um homem dotado de uma inteligência fabulosa, mas preso numa mágica e malícia infantis. Em suma, Byron era uma pessoa fabulosa, um poeta gigante com quem tive o prazer de conviver durante três anos, lendo seus poemas e 13 volumes de cartas e diários. Na minha opinião, não há nada melhor na língua inglesa.
* "A luz da noite" traz pistas de referências autobiográfcas. Por mais que este tipo de transferência seja inevitável, quanto controle o autor pode exercer sobre seu trabalho?
EDNA: Não creio que um escritor pense conscientemente em quanto pode controlar a porção de si mesmo que entra em seu trabalho. Escrever é como sonhar, vem do inconsciente. Sim, "A luz da noite" foi inspirado em eventos da minha vida e tem o que chamo de um cordão umbilical com minha mãe, mas é apenas o trampolim de onde parte e espero ver se fundir numa história que pode ser minha, sua, ou de qualquer um.
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