Fonte: Caderno Prosa & Verso (O Globo). Sábado (27/06/2009)
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# A escrita como enigma
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Por José Castello
* Em 'Flores', o mexicano Mario Bellatin exige que seus leitores se reinventem
> Flores, de Mario Bellatin. Tradução de Josely Vianna Baptista. Editora CosacNaify, 153 pgs. R$ 39.
Em uma mesquita, um xeque pede a um escritor que lhe relate um sonho místico. Sem consciência do que faz, o escritor passa a entoar um canto gutural que desconhecia e cujo significado lhe escapa. Preso a forças cujo controle lhe foge, o escritor — que, na entrada da mesquita, deixa sua perna ortopédica (uma parte de si) junto com os sapatos — é o protagonista de "Flores", livro desafiador do mexicano Mario Bellatin.
Bellatin e seu personagem se parecem pela ausência. Ao escritor mexicano falta o antebraço direito, uma deformação de nascença, que ele, em vez de dissimular, destaca com próteses artísticas. Mas é inútil procurar confirmações, ou desmentidos, desse vínculo. A literatura, para Bellatin, é um mundo autônomo, indiferente às semelhanças e às sincronias. Um mundo arcaico, no qual a razão está descartada.
Sempre pronto a desmontar a figura clássica do escritor
O escritor, em consequência, é qualquer coisa, menos um orientador. Arredio às interpretações de seus relatos, Bellatin deseja que eles sejam vistos como flores, que admiramos ou desprezamos, sem a necessidade de uma justificativa. Narrativas batizadas em série, sempre com nomes de flores, mas que guardam forte autonomia e das quais o próprio autor, ele, Bellatin, se deseja excluído. Como resultado perverso dessa estratégia, sua presença se torna ainda mais forte.
Sempre pronto a desmontar a figura clássica do escritor, Bellatin gosta de se apresentar de uma forma atordoante: "Sou Mario Bellatin e odeio narrar". A frase combina com suas ideias a respeito do ato de escrever, que ele exercita na Escola Dinâmica de Escritores, na Cidade do México. Uma estranha oficina literária na qual quase tudo é permitido — dançar, pintar, interpretar, delirar — e onde só existe uma proibição: a de escrever.
Sabe Bellatin que, sempre que nos aproximamos da literatura, a mão pesada e invisível do clichê — sobreposta à nossa, como uma prótese — passa a nos reglar. Melhor que o aspirante a escritor se distancie da literatura. Esse deslocamento destrói as convenções e os vícios literários; quando enfim o aluno volta a escrever, traz a mente vazia.
Figura sedutora e indecifrável, com seu braço ortopédico que faz questão de exibir como uma invenção, e não uma falta, ou sinal de uma dor, Bellatin acredita que o escritor é um personagem, cujo nascimento precede o próprio ato da escrita. Suas célebres brincadeiras — como o dia em que treinou duplos de grandes escritores para apresentá-los como os verdadeiros em um congresso literário em Paris — reafirmam a ideia de que a literatura não está só nos livros. Fazer ficção é uma maneira de interferir no mundo. De desarranjá-lo, abrindo caminho para novas desordens.
As ideias de Mario Bellatin a respeito da literatura são ainda mais impressionantes que seus relatos. Interesso-me bem mais por essas ideias — entre elas, a ideia de que as ideias não têm a menor importância — do que por suas narrativas. Ao transportar a literatura para o mundo, Bellatin desestabiliza a noção de realidade. Aponta-nos um mundo que ultrapassa as convenções; muito mais interessante do que o que aceitamos como verdadeiro.
Em nosso tempo de mediania, tédio e repetição, Bellatin se torna, assim, um escritor fundamental. Ninguém melhor para nos acompanhar na travessia das superstições, vícios e etiquetas que vigoram no sistema literário contemporâneo. Em "Flores", seu personagem-escritor afirma: "Tudo deve ser mudado". Essas mudanças não vêm, contudo, da habilidade técnica, ou dos pensamentos justos. Um misterioso pássaro negro as sussurra ao seu ouvido; a ave pousa em seu ombro e lhe diz algo que ninguém consegue ouvir. Certamente, nem o próprio Bellatin.
Distantes das referências, secos, avaros e hiperobjetivos, os relatos de "Flores" exigem leitores ativos, dispostos a fazer algo do que leem. A literatura deixa de ser, assim, matéria de contemplação, para se transformar em uma broca, que perfura o vazio. Todo leitor reinventa o livro que lê. Ainda mais radical, Bellatin exige que seus leitores, antes disso, se reinventem como leitores; ou nenhuma leitura será possível.
Em "Flores", os gêmeos Kuhn — crianças sem braços e pernas — provocam em Alba, a Poeta, uma estranha atração, que a impede de abandoná-los. É algo que não pode estancar e que a deforma também. A deformação infantil é consequência de medicamentos. Mas todos os personagens de Bellatin, como a senhora Henriette Wolf e o cientista Olaf Zumfelde, sofrem de algum tipo de desfiguração. E é com essas alterações involuntárias que eles devem viver.
A resignação está na base da literatura de Bellatin. Despida das convenções literárias e dos protocolos acadêmicos, seus livros partem de um ponto zero (um lugar fatal), no qual cada escritor é dono absoluto de seu destino. Esse zero, em vez de lhes roubar o chão, abre um abismo de possibilidades. Os personagens de Bellatin fazem da diferença uma afirmação; da imprecisão a condição para existir. São sujeitos singulares — que só em contraste com uma visão mediana do mundo se tornam estranhos.
Capacidade de desaparecer, uma grande qualidade
A escrita de Bellatin é um enigma, do qual as formas convencionais de conhecimento estão banidas. Em consequência, todas as ilusões a respeito da literatura fracassam. Para ele, a grande qualidade do escritor é a capacidade de desaparecer; pois só livre do autor um leitor consegue ler com liberdade. Como se nos dissesse que, para que um escritor se afirme, é preciso, antes, que toda a literatura desabe. Essa é a chance que temos de, enfim, chegar ao que Bellatin chama de "um lugar além do real".
O protagonista de "Flores" conhece, em um bar, uma crítica literária. Dividem uma mesa. A mulher fala sem parar; o escritor mantém-se em absoluto silêncio. A crítica se diz desnorteada porque não consegue mais classificar a produção literária. O escritor, ao contrário, sabe que é dessa impossibilidade que a literatura se alimenta. Enfrentar o impossível é a primeira condição para escrever. Talvez a única.
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