Esta matéria faz parte da publicação semanal do Canastra: Pílulas dos cadernos literários.
O texto abaixo é a transcrição da coluna do José Castello a respeito do novo livro de Gustavo Bernardo: Monte Verità.
Matéria publicada no Caderno Prosa & Verso (O Globo), em 13/06/2009.
A bofetada metafísica
Por José Castello
Tenho um vizinho que se diz filósofo. Semana passada, em uma reunião de condomínio, como discordássemos em torno de uma questão hidráulica e sabendo de minha paixão pela literatura, ele me desafiou: "Kant dizia que a leitura de romances corrói o pensamento e aniquila a memória". E, fechando a cara, prosseguiu: "Tome cuidado, porque a literatura pode provocar um grande mal".
Mal sabe meu vizinho que, naquela tarde, eu lia, com grande interesse, "Monte Verità", o mais recente livro de Gustavo Bernardo (Rocco, Coleção Jovens Leitores). Um romance filosófico que — mesmo retido na etiqueta comercial da "literatura para jovens" — trabalha justamente com algumas das ideias de Emannuel Kant. Em particular, com as que compõem a sua ética.
Antes de modificar o mundo, devemos modificar a nós mesmos, Kant sugeria. E nos dava outra sugestão ainda mais decepcionante: o importante não é procurar a felicidade, mas merecê-la. Não é agradável o conselho de que desistamos de consertar o mundo; mais dolorosa ainda é a proposta de que abdiquemos da felicidade. Contudo, só depois de abandonar a ilusão, podemos, enfim, viver. E até melhorar um pouco o mundo e diminuir a infelicidade.
É o que faz o moçambicano Manuel, protagonista de "Monte Verità". Depois de ter a mulher assassinada pela repressão política, só lhe resta fugir de Maputo. Não tem tempo, sequer, de apanhar a filha pequena que o espera na escola. Pouco antes, quando se deparou com a mãe morta, a menina lhe ofereceu um insight metafísico. Olhou o corpo vazio e disse: "Papai, Deus chegou atrasado". Aceitando as brutais limitações impostas pela ausência divina, Manuel se refugia na Suíça italiana, onde se emprega como garçom no hotel Monte Verità. Nos intervalos do trabalho, escreve o livro que estamos a ler.
O livro de Manuel conta a história de misteriosas "intervenções" impostas ao planeta Terra, atos pragmáticos e "sem autor" que, no entanto, modificam nossa existência. Quem as propaga? Algum poder secreto? Seres de outro planeta? O próprio Deus? A primeira delas bane todas as armas. Nas intervenções seguintes, combate-se a explosão demográfica, a poluição, a violência contra os animais e os crimes hediondos. Atos que, no entanto, não pretendem dar lições de vida, ou "educar". O objetivo não é salvar, ou amadurecer, mas, sim, levar o homem a abandonar a onipotência, para que suporte se ver como o ente vulnerável que é. O homem deve desistir da felicidade e da perfeição para, contando apenas consigo mesmo, merecer enfim esse nome.
Olhei para meu vizinho e pensei no modo altivo com que ele manipula as ideias, como se elas existissem apenas para lhe servir. Ocorreu-me, então, que a filosofia é, muitas vezes, uma forma mais obsessiva de literatura. Acontece que, enquanto os filósofos se agarram precariamente a seus sistemas e conceitos, os escritores — que não têm onde se amparar — agarram-se ao que lhes falta. Todo escritor parte, sempre, de uma ausência. Um grande vazio brilha na primeira página em branco.
Pensava nisso quando o porteiro me entregou um postal expedido por uma amiga que vive em Paris. Uma bela fotografia do escritor francês Louis-Ferdinand Céline, tomada seis anos antes de sua morte. Sexagenário, Céline — um escritor fabuloso sempre odiado por culpa de suas ideias fascistas, que são de fato hediondas — aparece em um jardim, vestindo roupas amarfanhadas, desolado e cabisbaixo, a observar seu gato. Ereto e solene, ao contrário, o animal ostenta o olhar altivo dos "homens que sabem pensar"; enquanto Céline, àquela altura entregue ao ostracismo e à derrota, é só um homem que luta para suportar a dor.
Duro e intransigente na vida, Céline fez da literatura, ao contrário, um lugar de liberdade. Não conseguiu livrar-se, porém, da leitura dogmática a que seus grandes romances, até hoje, estão condenados. A que torrente de olhares os escritores estão expostos! Há poucos dias, uma vaga absurda de incompreensão levou "Aventuras provisórias", o romance de Cristovão Tezza, a ser recolhido, depois de adotado pelas escolas de Santa Catarina. Aos olhos obtusos das autoridades locais, duas ou três cenas amorosas tornariam o livro ofensivo aos adolescentes.
É desse mesmo mundo duro e cego, em que romances são vistos como venenos, que trata "Monte Verità". Ele é também o objeto de "Aventuras provisórias", a história de uma traição que termina em um crime. A ética, para o escritor, porém, não está na submissão a princípios, ou a dogmas. O escritor só tem uma ética: não pode trair a si mesmo, sob pena de se tornar, apenas, um escrivão. E é nessa condição inegociável que a potência da literatura se garante.
Em nosso tolo mundo do Eu, os escritores se transformaram em celebridades. Escritores deveriam repetir, hoje, a frase de Manuel, o protagonista de Gustavo Bernardo: "Eu não sou nenhum tipo de deus. Eu não sou sequer nenhum tipo de eu". Universo vazio, no qual as coisas só existem em potência, a literatura produz narrativas tão distintas quanto "Aventuras provisórias" e "Monte Verità"; agrega — sem que isso signifique conflito mas, ao contrário, riqueza — autores tão distantes quanto Cristovão Tezza e Gustavo Bernardo. É por isso que a literatura se torna ameaçadora: porque não exclui nada, nem ninguém. Porque encara, sem medo, a precariedade do homem.
Julio Cortázar dizia, por isso mesmo, que só a literatura é capaz de desferir no mundo uma verdadeira "bofetada metafísica". Não para fazer proselitismo, ou pregação; tampouco para buscar seguidores, ou produzir crentes. Ao contrário, a literatura só produz descrentes; sujeitos que, cientes da fragilidade do mundo, fazem da fraqueza a sua grandeza. Tal disponibilidade para o quase-nada rege, também, os verdadeiros filósofos. É dela, ainda, que o moçambicano Manuel se vale para continuar a viver. Conhecido por seu ceticismo, o filósofo escocês David Hume, um antecessor de Kant, afirmava que a filosofia é um saber vacilante, no qual "praticamente nada se pode dizer". É também com esse "praticamente nada" que os escritores escrevem.
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