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quarta-feira, 8 de julho de 2009

Conto Passageira

Minhas férias estão acabando. Já estou ficando deprimida... tanto que tinha para fazer e não consegui concluir nem um terço.

Bom, para me deixar um pouco mais para cima, publico um conto meu.

Passageira
Ana Cristina Melo

Enquanto o carro avançava numa velocidade de bicicleta, a pista inversa corria fluída, levantando uma nuvem de fumaça preta. À sua frente, outras nuvens. O sol tentava vencer a paisagem cinza-chumbo das nuvens. Os raios que conseguiram a cegaram momentaneamente. Tateou a bolsa para encontrar os óculos escuros. Vinte metros depois, o vidro foi salpicado por grossos pingos de chuva, logo transformados em temporal. Poças rapidamente começaram a se formar. Até que ela viu caminhar, por entre os carros, uma verdadeira multidão de homens e mulheres de branco. Seu coração ao mesmo tempo em que não sentia medo, parecia diminuir de ritmo.

Eles cercaram seu veículo, enquanto ela mantinha o olhar sempre reto, ansiosa para que o trânsito se desfizesse. Travou as portas e evitou a visão periférica.

O tempo foi ficando cada vez mais fechado. Não arriscava confirmar, mas sabia que eles continuavam ali.

Quando sua mão decidia destravar as portas, seu olhar esbarrou no painel. Viu a foto com as filhas e os netos. Sentiu falta do marido, que se fora há dois anos, após um casamento de cinquenta e um. Mas a vida ainda era boa, não lhe faltava amor, nem saúde, apenas pequenos engasgos comuns às suas sete décadas. Falta mesmo só sentia do ombro companheiro, ausência que ainda a fazia chorar todas as noites, quando os bons motivos não lhe eram suficientes para aplacar a saudade que vinha forte. Sentiu vontade de fugir dali.

Os carros da frente começaram a se mover. Ela engatou a primeira e seguiu devagar, até que no espelho retrovisor não viu mais nenhum vestígio da multidão.

A chuva cessou e o sol foi vencendo novamente as nuvens pesadas. A luz voltou a cegá-la momentaneamente.

Fechou os olhos para se proteger e, ao abri-los, viu-se então de branco. Ouviu o barulho metálico das máquinas que diziam o quanto estava viva.

Segurando suas mãos estavam duas gerações: motivo para ainda continuar.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Conto meu no Histórias Possíveis

Saiu a edição dessa semana (#46) da revista literária eletrônica Histórias Possíveis. E nele um conto meu — Retrato na estante.

Esse conto é um dos meus preferidos.

Por que a predileção? Talvez eu o sinta como um divisor de águas na minha escrita, pois depois que o criei e ele me deu (numa versão anterior) uma menção honrosa, me senti... diferente. E tudo que escrevi e reescrevi a partir dele foi muito bem recebido em suas leituras críticas.

Como não podia deixar de ser, Retrato na estante é um dos contos do meu livro que já está prontinho, colocando as orelhinhas para fora da gaveta.

O conto eu já havia publicado aqui no blog, mas sempre é bom vê-lo de roupinha nova em outros cantinhos literários.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Passeando pelos livros... e talvez encontrando respostas.

E pensar que escrevi esse post pela manhã e o blogspot fez o favor de perdê-lo, na íntegra, sem deixar nenhuma linhazinha de rascunho... Vamos ver se consigo reescrever, claro que não sairá com as mesmas palavras...

Hoje estive passeando pela minha estante. Estou em estado de suspensão. Terminei há um mês a última versão do meu livro de contos, que está sendo escrito há quatro anos e que está agora tentando colocar a orelha para fora da gaveta...

Sinto falta dos meus personagens. Estou com um sentimento de vazio. Uma nostalgia, quase uma desorientação.

Para dominar a ansiedade, comecei a escrever um romance, mas ainda não engrenou. Talvez porque ainda esteja embuída da atenção a cada palavra, como faço no conto, justificando sua existência. Preciso deixar a mão correr mais livre, para só depois podar. Estou também escrevendo novos contos, e guardando numa outra gaveta. Mas não sei escrever aleatoriamente. Chega num ponto que preciso achar um fio condutor que ligue todos eles. Acho que só depois que eu encontrar esse fio, vou começar a produzir com a agilidade de antes.

Hoje, meu segundo dia de férias, deveria estar teclando alucinadamente, mas não estou. Na realidade, não teclando, escrevendo, nos meus cadernos carinhosamente escolhidos (ah, papelarias, lugares mágicos!), e com a letra que se posiciona redonda com a ponta de minha lapiseira. Só depois é que vou para o Word, para cortar, colar, retirar, incluir...

Então, por que não estou escrevendo? Talvez porque esteja frio, talvez porque tenha medo de recomeçar, talvez porque sinta a espada frequente que nos obriga a fazer o melhor possível. Tenho um outro romance bem avançado na gaveta, que fiquei me perguntando se seria bom. Talvez seja tolice minha não terminá-lo. Deveria terminá-lo para depois me questionar sobre um trabalho pronto. E não começar um novo, por mais interessante que esse novo enredo me pareça.

E pensar que não tenho problemas para escrever. Faço em qualquer lugar, apesar do pouco tempo. Sou funcionária pública e trabalho, muito. Cumpro carga horária de 8 horas, fora as três horas gastas em locomoção. Sobra para mim esse tempo do transporte, a hora do almoço (que me refugio na biblioteca da ABL), os minutos antes de arrumar as crianças para a escola, os minutos antes que o sono me domine... Mas às vezes falta concentração ou inspiração para escrever em alguns desses lugares, em outras, escrevo até em verso de nota de compra, se a vontade me vier incontrolável e meu caderninho de ideias não estiver comigo. Gasto, então, esses minutos, lendo, rabiscando só as ideias, atualizando o Canastra. E no que sobra (que é muito maior), penso em literatura, respiro, imagino. Mentalmente, transformo em palavras um céu azul, um bebê sorrindo, a vida que flui sem que venhamos a lhe dar a devida atenção.

E então por que não estou escrevendo, se agora me sobra tempo? Boa pergunta. Talvez seja o excesso de assuntos para resolver: arrumar os armários, terminar a revisão do livro publicado (técnico), etc.

Talvez seja apenas medo.

Por isso, percorri minha pequena biblioteca. Tirei alguns exemplares e resolvi reler trechos que eu havia marcado. Peguei os livros e coloquei ao meu lado. Fui relendo e transcrevendo aqui, porque adoro dividir com vocês. E, então, percebi que meus olhos paravam em trechos que me pareciam respostas para perguntas que não ousei formular. Mas que estavam ali, dentro de mim.

A primeira frase que transcrevi me tocou profundamente. Traz a lembrança de menina, quando já fantasiava minha vida. Imaginava uma vida diferente da que eu tinha, mas que desejava para mim. Pensava em cada detalhe, em cada frase de algum diálogo esperado, de cada cena, como uma peça de teatro. Andava pela casa, comia, ia dormir, pensando na próxima cena, no próximo capítulo. E com isso, passava dias vivendo cada idade naquela situação. E quando chegava a idade de partir, terminava a história, ou melhor, a interrompia. Não saberia dizer como seria ir embora. E então ficava triste. Sentia que faltava um pedaço de mim, me sentia órfã. Até pensar numa nova vida. Inventar uma nova história. Primeiro comigo, depois comecei a fantasiar histórias para os outros: amigos, familiares, desconhecidos. Se Vargas Llosa estiver correto, talvez tenha sido a semente de uma vocação literária, a mesma que espero ser ratificada um dia, talvez quando se tornar realidade a última fantasia...

Então, quando acabar esse post, darei atenção a minha filha, depois, me arrumarei para prestigiar a querida Lívia Garcia-Roza que lança, hoje, seu livro “A casa que vendia elefantes” no Salão da FNLIJ. E, à noite, ou no máximo amanhã, sentarei para escrever. Qualquer coisa. Nem que seja para amassar. Ou para depois retocar, excluir, incluir, ou seja, escrever...


Então vamos aos textos...

“Se não estou errado em minha suposição (claro que tenho mais chances de estar errado do que certo), um homem ou uma mulher desenvolve precocemente, na infância ou no começo da adolescência, uma predisposição para fantasiar pessoas, situações, casos, mundos diversos do mundo em que vive, e essa inclinação é o ponto de partida do que mais tarde poderá se chamar vocação literária.(...)

Os que o fazem e se tornam criadores de mundos por meio da palavra escrita — os escritores — são uma minoria, que, àquela predisposição ou tendência somaram essa expressão da vontade que Sartre chamava de escolha. Elegeram-se como tal. Organizaram a vida para transportar para a palavra escrita essa vocação que antes se contentava em fantasiar, no território impalpável e secreto da mente, outras vidas e outros mundos.”

“A vocação literária não é um passatempo, um esporte, um lazer refinado que se pratica nas horas vagas. É uma dedicação exclusiva e excludente, uma prioridade à frente da qual nada pode passar, uma servidão livremente escolhida que transforma suas vítimas (suas ditosas vítimas) em escravos. Como no caso do meu amigo de Paris, a literatura passa a ser uma atividade permanente, algo que ocupa a existência, que extrapola as horas que alguém dedica à escrita e impregna tudo mais que se faz, pois a vocação literária se alimenta da vida do escritor exatamente como a comprida solitária se nutre dos corpos que invade. Como dizia Flaubert: “Escrever é uma maneira de viver”.


“Cartas a um jovem escritor”
Mario Vargas Llosa

“Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.
(...)
Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma.”
“Cartas a um jovem poeta”
Rilke

“Não apenas as origens do texto literário são obscuras. O próprio significado deste pode ser intrigante — inclusive, e principalmente, para o próprio autor, a quem frequentemente se pergunta o que quis dizer com determinado conto, determinado poema. Como se a obra fosse um enigma do qual o escritor, e só o escritor, possui a resposta. O leitor, este, tem de sofrer; o leitor é Édipo ouvindo da esfinge literária o desafio: “Decifra-me ou te devoro”. Mas isto é um equívoco. Em relação à sua própria obra, o escritor é como alguém que tem uma ferida no dorso; a lesão está ali, ele a sente, mas não pode vê-la. E, se não tem um espelho à mão, precisa de alguém que lhe diga o que está se passando numa parte de seu corpo que é para ele quase como a face oculta da Lua.”

“Mas é isso que acontece quando a gente se deixa levar por palavras. Porque nos arrastam, as palavras. Sobretudo as pomposas.”

“Quando eu menos esperava, e num gesto quase automático, pegava uma caneta e uma folha de papel, e escrevia. Fui assim colecionando histórias que, no entanto, guardava na gaveta: aprendera a ter paciência. Ao fim de seis anos eu tinha uma coleção de textos ficcionais que representavam o melhor que eu podia fazer: se isto não é bom, eu pensava, então não sou mesmo escritor e é melhor largar esta coisa de vez.”

“De qualquer modo, a gente escreve. E aí vem a pergunta: O que fazer com aquilo que escrevemos? Guardamos, tipo diário íntimo, ou mostramos?

Melhor mostrar. Textos guardados na gaveta são perigosos. Fermentam, produzem emanações emocionalmente tóxicas que adoecem ou fazem sofrer seu autor. Agora: mostrar para quem? Isto é importante, inclusive para não encher o saco de pessoas. Pais, professores, amigos são o primeiro escalão. Depois vêm os escritores. Mostrei meus originais a vários deles. Rubem Braga perdeu a minha primeira coleção de contos (e eu não tinha cópia). Erico Veríssimo foi mais amável.”


“O texto, ou: a vida. Uma trajetória literária”
Moacyr Scliar

“Eu não escrevo aquilo que quero, eu escrevo aquilo que sou”.

Clarice Lispector.
Citação de “O livro entre aspas”

“Convém tem disposição para limpar armários e gavetas.
Pelo menos vez-ou-outra. Ajuda a recomeçar um capítulo ou reanimar uns versos sem sangue.”

“Tem que trabalhar duro. Faça chuva ou faça sol. Trabalhar duro não significa ficar só escrevendo por horas e horas. Pensar na vida também é trabalhar. Pensar no mundo. Pensar na humanidade. Pensar nas belezas, nos desacertos, pensar até na morte da bezerra.
Pensa que é fácil?”

“Tem que reescrever um parágrafo umas quinhentas vezes. Procurar uma palavra certa durante meses. Apagar, substituir, refazer. Rasgar e embolar papéis, anos e anos a fio. Guardar alguma coisa aproveitável.
Ter obsessão pela arte o resto da vida.”

“Tem que frequentar livrarias, bibliotecas, feiras de livro, seminários, congressos e bate-papos em cafés. Brigar por um livro raro, conseguir emprestado aquele exemplar magnífico, juntar dinheiro para comprar o livro que não vê a hora de ler. Ouvir com carinho e cuidado qualquer definição de literatura.
Alguém explica a vida?”

“Tem que reler os livros de que mais gosta. Os clássicos e os novos. Reler vários trechos, em doce ou furiosa contemplação. Revisitar o desejo do protagonista. Identificar-se com esse desejo, viver desse desejo. Ajuda a entender que os melhores livros são os que permanecem dentro da gente, embora a cada dia pareçam tão novos, tão outros.”

“Tem que gostar de papelarias. Para comprar ou pelo menos namorar clipes, grampeadores, fitas adesivas, pastas de arquivo, resmas de papel, tesouras, lápis, borrachas, canetinhas de várias cores, réguas, cola-bastão, tinta para impressora, disquetes e papel para fax. Papelaria é um lugar onde sempre se encontra um escritor. Ou um estudante.
E estudante e escritor são sinônimos, entenda isso bem direitinho”

“Deixar o tempo passar. Escrever outras coisas. E ler de tudo, sempre.”


“Esses livros dentro da gente. Uma conversa com o jovem escritor”
Stela Maris Rezende

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Conto Longe de casa

Para começar a sexta-feira ou terminar a semana, um conto meu. Talvez esteja mais para uma crônica. Bem, vale como exercício.

Espero que gostem.

Longe de casa
Ana Cristina Melo

Estava sozinha naquela mesa de bar, há meia hora. Consumira apenas um coquetel, quando o percebeu lhe fitando, seis mesas à sua frente. Era charmoso, o suficiente para chamar de bonito. Tipo semelhante aos que conhecera nos últimos meses.

Começara a sair sozinha desde a última briga com o marido. Contas, a escola dos filhos, as picuinhas diárias, e o casamento estava se afogando.

Foi na mesma época em que ele começou a trabalhar à noite, uma vez por mês. Sempre às sextas. Ela passou a deixar as crianças com a mãe, e buscar a aventura que estava faltando.

Nunca ficava no mesmo lugar. Sempre em bares diferentes. Igual, só o cabelo bem arrumado, a maquiagem que destacava seus olhos claros e a boca desenhada, o vestido decotado e o olhar de quem estava disponível.

A primeira vez fora a mais difícil. Não sabia como fazer, sem parecer vulgar. Não sabia o que dizer a um estranho. Deixou que ele conduzisse o encontro. Enredasse-a numa noite agradável, avivasse sua libido. Limites transpostos, passou a desejar novos encontros, e a descobrir muito de si em cada novo parceiro.


O desconhecido se aproximou. Posso? Ela concordou com a cabeça e um olhar ardiloso. Conversaram um pouco. Amenidades, longe de detalhes sobre suas vidas. Ela notou a aliança dele na mão direita. Ele notou a dela. Essa era a senha.

Um toque na mão, a outra correndo suas coxas por baixo da mesa. A conversa cada vez com menos palavras e mais sensações. Ela pede a conta. Ele paga. Entram num táxi, mudos. O coração acelerado pela transgressão. O motorista os deixa dentro de um motel.

Se entregam às reações de cada corpo, nada além. Ela descobre toques novos, mais ousados. Sensações há muito esquecidas são repetidas pela noite adentro.

O corpo cansado, satisfeito, relaxa no peito nu.

De manhã, ele a acorda com provocações.

Ela sorri e se espreguiça antes de abrir os olhos. E ouve ele falar, enquanto se dirige ao banheiro:

— Vamos, meu amor, ainda temos que pegar as crianças na casa da sua mãe.

sábado, 4 de abril de 2009

Conto Sem Erros

Esse conto saiu na edição nº 37 da revista virtual Histórias Possíveis. Foi criado para dissecar a palavra "interruptor".

Espero que gostem!

Sem erros
Ana Cristina Melo

Ele teclava o computador com celeridade. Recusava-se a olhar o canto do monitor ou o próprio pulso, para saber quanto tempo ainda tinha até a manhã seguinte, quando deveria estar pronta a alteração no sistema contábil que dava manutenção.

Tornou-se programador de computadores aos dezoito anos, na mesma época em que desejara ser músico. Mas a origem humilde lhe alertava diariamente da ampulheta que todos nós carregamos; a areia escorre a cada dia sem que tenhamos domínio sobre ela. As horas extras e as noites em claro, no ambiente frio do escritório, não diminuíram nem quando se casou ou nasceu sua primeira filha; não que faltassem reclamações da mulher, mas o que não podia deixar faltar era o emprego, pois no dicionário do gerente não existiam as palavras casa nem família. Aos trinta anos, era um ancião para o mercado de trabalho.

Acabara de conseguir a última compilação do programa, quando o monitor apagou. Só lhe veio um pensamento: estaria salvo seu trabalho? Relaxou ao se lembrar que o fizera antes de pedir a depuração dos erros. Livre do fantasma, pôde se questionar o que teria ocorrido, e só então percebeu que não havia uma luz sequer à sua volta. Estava numa completa escuridão. Gritou, mas sua voz ecoou na sala vazia e voltou lhe ferindo os tímpanos. Não sabia dizer se a dor de cabeça começara naquele momento ou bem antes.

Sem qualquer referência ou foco de luz, se levantou e, no segundo passo, acertou a perna na mesa. O palavrão dito e devolvido a ele próprio pareceu-lhe estranho. Resolveu se sentar novamente. Tentou imaginar a disposição do escritório e não conseguiu. Buscou em sua memória o que existiria sobre sua mesa ou nas gavetas, e nada lhe vinha com certeza.

Começou a sentir uma agonia pressionar o meio do peito, enquanto a cabeça latejava cada vez mais. Lembrou-se que no corredor onde estava, na outra extremidade da sala, havia uma janela. Deslizou a cadeira para o lado até esbarrar num armário. Com bem mais cuidado, tateou o móvel baixo que corria pela parede, até chegar no fundo da sala e achar a cordinha da persiana. Girando-a, pôde sentir as frestas tornando-se paralelas: nenhum foco de luz vindo da rua. O peito doía mais forte, a cabeça idem. Para se acalmar, concluiu ser um apagão. Mas como chegaria em casa? A pergunta o fez se lembrar da esposa e da filha. Sua mente parecia também afetada pelo breu, pois as imagens das duas lhe vinham esmaecidas. Não conseguia descrever seus rostos, os detalhes. Tentava se lembrar da voz, para que essa resgatasse suas lembranças. Nada. Por um instante, teve medo de uma cegueira. Não temeu pela falta da visão, mas pela perda das lembranças que o salvariam de uma escuridão total. Nessa hora, sentiu o peito se romper.



Os seguranças, atraídos por um barulho seco, entraram na sala da Informática. Sabiam que sempre havia alguém virando a noite em frente àqueles computadores. No canto da sala, encontraram o monitor ligado, com linhas que lhes eram hieróglifos, e no centro da tela uma mensagem: “Compilação terminada. 0 erro(s)”.

— Não tem ninguém aqui. Só esse trem que pelo jeito ficou ligado a noite toda, Zé. Ainda bem que não faltou luz.

— Carlos, corre aqui, tem um homem caído entre as mesas.

— Virgem nossa, é aquele moço que é meu vizinho. Tava trabalhando aqui ontem. Quando saí de casa hoje, ainda vi a menina dele. Uma formosura loirinha que tá dando os primeiros passos…

— Não é hora pra isso, homem, corre pra chamar alguém, pois ele ainda está vivo!

sábado, 21 de março de 2009

Conto Sem erros no Histórias Possíveis

O Histórias Possíveis é uma revista literária que nasceu com narrativas inspiradas por notícias.

Desde fevereiro, traz uma proposta diferente: dissecar palavras que serão dadas como desafio para os assinantes. A edição, antes mensal, agora passou para semanal.

Bem, na edição desse sábado (nº 37) há, entre os textos escolhidos dos assinantes, um conto meu -- Sem erros.

Deem uma passadinha por lá, conheçam a revista, e leiam os contos. Claro, não se esqueçam de acessar o meu.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Conto "Mulatas e predicados"

Hoje é meu último de férias. Olha que triste: voltar a trabalhar numa sexta-feira de Carnaval. Estou sofrendo só em imaginar o trânsito que vou pegar amanhã, para voltar para casa.

Não costumo cair no samba, nem ficar assistindo aos desfiles. Nada contra, parar meia horinha na frente da tv, ou levar as crianças para um bailinho no shopping. Mas minha predileção mesmo é tirar esses dias para descansar. Como acabei de sair de férias, esses dias serão para me acostumar que a moleza acabou, e tentar carregar um pouquinho mais a bateria.

E aproveitando esse espírito carnavalesco, publico um conto que eu havia escrito ano passado.

Espero que gostem!
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Mulatas e Predicados
Ana Cristina Melo

"Sonhar não custa nada" já dizia o samba da Mocidade, há dez anos. O de Filomena talvez custasse. Cobiçava avançar os setecentos metros da Sapucaí, ovacionada pela arquibancada. Embasbacou com o convite de Cidinha, para sair na primeira escola do grupo A que desfilaria no sábado de Carnaval. O senão estava em Filó não saber sambar, não gostar do ritmo nascido no morro, e não frequentar quadra de escola.

O interesse superou a má impressão que Filomena tinha da colega de repartição, pois a mulata de corpo esculpido sempre jogara charme para seu namorado. E conhecendo Henrique, valia não se descuidar.

Aceitar fora fácil, o duro seria o preço do que viria depois. Se fosse foto para revista, Photoshop resolveria. Mas no asfalto, só malhação; além de ser preciso perder a virgindade na depilação. Sem contar o débito das aulas de samba no pé e a reação de Henrique.

Decidida, intercalou corrida e caminhada ao lado do canal da Av. Maracanã, sofrendo com a catinga da pista alternativa. Problema minimizado em prol da meta dos seis quilos, percebidos no reflexo do seu espelho. Para enrijecer as regiões que seriam exibidas tal qual comercial de cerveja, investiu em localizadas no bumbum e adjacências.

O próximo passo era dar um jeito nos pés. A vizinha mulata, passista da Mangueira, poderia ajudar a branquela mignon, cabelos lisos e rosto redondo, que pouco escapou de ser loira. Sete aulas e Filó se achou levando o Estandarte de Ouro. Delírio sem reflexo no "Ai, minha virgem" que a vizinha murmurou, após conferir o resultado.

A um dia do desfile, era hora de encarar Sebastiana, a depiladora de seu salão de beleza. Na sua vez, seguiu a mulata de um metro e oitenta, avantajada nas proporções, que a conduzia para a última cabine. "Primeira vez?", "Sim!" "Vai querer cavada?" "Hum, é, vou!", "Deite sem a saia. Puxe as pernas e junte as solas dos pés!". Pior que isso, só dizendo "arreganha aí, menina!".

Beto, seu cabeleireiro, a prevenira que Tiana era "pouco dada a amabilidades, mas eficientíííssima". Elogio insuficiente para sobrepor o pânico.

Início insólito, e a situação só foi piorando. Ludibriada com a sensação causada pela cera quente, teve vontade de agredi-la, quando num puxão, ela lhe arrancou os pêlos e um grito, ouvido do outro lado do quarteirão. Fez menção de se levantar, mas Sebastiana impediu. "Não quero mais"! "Não pode ficar pela metade"! "Ah, o que não pode é eu sentir... AAAAII... MERDA"! Sebastiana não perdeu tempo e antes que Filó retrucasse, puxou mais duas vezes, concluindo a parte da frente. "Pronto! Agora tira a calcinha e fica de lado". Ofegante, obedeceu, achando que a outra não a deixaria sair sem terminar a tortura. "Puxa essa banda e segura"! Voltando à razão, conseguiu esboçar um "pra quê?". "Não pediu cavada? Vou depilar atrás, bem lá". Foram três segundos para assimilar onde era o lá. Suficiente. Ninguém havia visto o "lá", e não seria Sebastiana a primeira. Deu um salto da maca, vestiu sua saia, sem nada por baixo, e sumiu pelo corredor.

Faltava Henrique. Depois de abusar da luxúria como estratégia, contou-lhe do desfile. Seu salto da cama foi tão acrobático quanto o dela no salão. Indignado, berrou que não a aceitaria expondo seus predicados em rede nacional. Filó alegou que não ia expor nada, e também não ia desistir. Furioso, saiu batendo porta, jurando terminar tudo.

Filomena dormiu em prantos, pela briga, e pela virilha que ainda parecia ter sido arrancada de seu corpo. No dia seguinte, acordou querendo desistir, mas reconsiderou ao se olhar no espelho. Afinal, tinha que valer o sacrifício.

Na hora combinada, estava no metrô da Saens Pena, em direção à Praça XI. A fantasia seria levada por Cidinha para a concentração.

Tardou a encontrá-la entre tantas alegorias. Instruída a esperar, sentou-se no meio-fio, enquanto absorvia os detalhes da reta final. Retoques em carros alegóricos de sete metros de altura, verdadeiras obras de arte esculpidas em sucatas. Morenas, mulatas e negras que desfilavam suas belezas e intimidades com um mundo que fazia Filomena se sentir deslocada.

Talvez lhe emocionasse mais uma chuva de confetes, igual a que jogava no quintal, quando menina, o mais próximo que curtia do Carnaval. Nunca fora a bailes, nem vestira fantasias, a não ser a mesma saia de havaiana, a cada ano mais rala. Agora, estava tão perto de desfilar, e sobrepujava a idéia de ser tudo um sonho vil.

Anoitecia quando avistou Henrique entre as barracas de cerveja. Parecia menos bravo que na noite anterior. Não pediu desculpas, mas disse que encontrara Cidinha, que o convencera a aceitar a fantasia. Um beijo apagou o rompimento e a fez entrar novamente no clima. Quando Cidinha voltou, Henrique se afastou combinando encontrar Filó na Apoteose.

Serelepe, seguiu a colega até um recuado, onde ficou aguardando sua fantasia. Várias mulheres trocavam de roupa e enfeitavam seus corpos com todo tipo de brilho. Logo depois, Cidinha voltava com uma fantasia de sorvete da ala da gula, um dos sete pecados, enredo da escola.

Custou um pouco até Filomena entender que seu corpo malhado desfilaria escondido em um sorvete de plástico. Entrou na avenida sem saber o que a conduzia: se raiva, orgulho ou os chefes de ala que mantinham a ordem.

Oitenta minutos de desfile, e ninguém percebeu que por baixo daquela fantasia, Filomena não cantava o samba, apenas afogava um capricho. Muito menos ela poderia imaginar que enquanto cruzava a avenida, Cidinha cobrava o favor que fizera. Entre os restos do carro abre-alas que quebrara, o do Kama Sutra, ela exibia todos os seus predicados e complementos siliconados para o sujeito Henrique.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Conto Telefonemas

Esse conto saiu publicado no site Histórias Possíveis.

Bem, para os que ainda não leram, espero que gostem.

Telefonemas
Ana Cristina Melo

Estava deitado na cama, a atenção em seu Flamengo que vencia o Cruzeiro, no Mineirão. A posição do time no campeonato era menos inglória do que sua performance sexual nos últimos tempos. Pudera: há doze meses se submetia a todas as insanidades da mulher, para garantir que conseguiriam o bebê tão desejado por ela. Não lhe era má a idéia de um filho, mas não podia imaginar que se esfalfaria de praticar o sexo para conseguir esse rebento.

Tudo começara com o decreto: “quero um bebê”. Estavam então há dois anos casados; emprego estável para ambos, maturidade na casa dos trinta, apartamento jeitoso no Catete, e não havia motivos para desprezar o projeto.

Como primeira providência, pílulas no lixo. Vera aumentara ainda a freqüência das relações para dias alternados. Elias, algumas vezes sucumbindo ao desgaste do dia, pedira trégua, o que gerou um pequeno terremoto, com acusações de desprezo ao filho que nem nascera, de insensibilidade com a aflição da mulher, e de estar falhando com suas obrigações. Paz sempre fora seu lema, e por isso lá ia ele, cansado, com sono, gripado ou murcho, buscar imaginação até mesmo fora da cama, para não permitir que a estrelinha deixasse de ser marcada no calendário. Teria valido a pena se Vera conseguisse engravidar. Três decepções e ela concluiu que um dos dois era estéril. Médicos foram procurados, Vera exigiu ressonâncias e espermogramas, os especialistas tentando convencê-la de que era muito cedo. Resultado: Elias foi obrigado a se submeter aos métodos conselhos-de-amigas.

A casa virou um laboratório amador de reprodução. Tabelas de ciclo menstrual coladas na parede do quarto, calendários presos na porta do banheiro, fitinhas para detectar o período fértil no criado-mudo e telefonemas enlouquecidos no meio do dia.

— Elias, desce agora.

— O quê, Vera? Onde você está?

— Prestes a ganhar uma multa se você não descer em dois minutos.

Eram dez da manhã. Longe da hora do almoço, mas disposto a não contrariá-la, Elias se deixou seqüestrar para um motel na Glória. Essa foi a primeira entre muitas vezes em que Vera percebeu, no meio do expediente, que estava em seu período fértil. Nesses dias, ele tinha medo de voltar para casa. Sabia que não dormiria antes das duas da madrugada, tendo ao seu lado um ser deitado com o quadril sobre quatro travesseiros e as pernas esticadas na cabeceira da cama.

Dois meses depois, a mulher decidira optar pelo método-retenção. Elias era obrigado a guardar os craques da seleção por vinte dias, para soltá-los todos numa única partida. Começou a entender como se sentem os jogadores durante uma concentração.

Fracassada essa fase, ela tentou o método exercício-diário, que foi terminantemente repelido. Já haviam riscado oito meses. Voltaram a um especialista. Exames nela, coletas de sêmen à base da Playboy, sangue de ambos e o veredicto de normalidade. O problema, se existia, estava na cabeça de sua mulher.

Vera concordou em abandonar calendários, fitinhas, medições de temperatura, e acatar um intervalo de dois dias para cada relação.

Ela não falava mais nada, mas havia três meses que Elias a percebia tensa durante alguns dias do mês. Início da crise que culminava ao ouvi-la chorando no banheiro, encontrá-la chorando ao chegar em casa, ou despertar com seu choro de madrugada. Ele se calava. Era melhor não declarar o que ambos já sabiam. Esperava o tempo de secagem, que durava mais cinco dias, e depois tudo voltava à normalidade.

O time do Cruzeiro acabara de virar o jogo quando Vera saiu do banheiro. Seus olhos estavam inchados e Elias se perguntou se ela havia ficado mais silenciosa ou se ele estava desligado do mundo. Estranhou os passos contidos da mulher e resolveu arriscar “está tudo bem?”. Ela se virou para ele com um olhar cortante e manteve-se muda. Tirou a camisola, vestiu jeans, camiseta, e jogou a bolsa no ombro. “Onde você vai?”, ele arriscou perguntar. Circular pelo Catete às dez da noite não era uma idéia muito inteligente. Ela não respondeu. Ele ensaiou em pensamento obrigá-la a dizer, mas desistiu. Imaginou que só quisesse espairecer. Não contava com a ligação uma hora depois, uma verdadeira catarse, xingamentos e a notícia de que ela havia ido embora.

Tentativas frustradas de consertar a rachadura daquele casamento, incluindo a proposta de adoção, rechaçada por Vera, e Elias decidiu sair, deixando o apartamento só para ela. Foi morar com um colega de trabalho. Em todo tempo, sentiu falta da mulher, por quem ainda era apaixonado. Inconformado, um pouco raivoso, buscou esquecê-la em noitadas com amigos solteiros e amigas dadivosas.

Seis meses de separação, e o telefonema de Vera. Pedia um encontro para acertarem os detalhes do divórcio. O que deveria ter sido o começo de um fim, teve num beijo a fagulha para a volta. Passaram a se encontrar depois do expediente, duas vezes por semana, reacendendo aos poucos o fogo do relacionamento.

Um mês depois, noite de sábado. Elias, mais comportado, estava assistindo a um jogo de seu time, em mais uma derrota. O telefone tocou. Ouviu o “volta pra casa, papai” que lhe nublou os olhos. Bastaram duas horas para que o armário do apartamento estivesse novamente lotado.

Comemoraram a nova família no lugar mais visitado da casa, ele desejando que ela não soubesse das muitas noites de solteiro-pós-casado, ela feliz por ter usado pelo menos uma vez a sugestão da amiga: o método material-alternativo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Um outro olhar (um conto de Natal)

O conto foi escrito hoje, mas com a emoção do espírito de Natal que toma conta de todos nós. Então perdoem qualquer falha. Não chegou a ir para a gaveta. :)

Espero que gostem.

Feliz Natal!!!
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Um outro olhar

Ana Cristina Melo


Era um boneco de neve daqueles que ele vira no filme engraçado, assistido pela vitrine da loja de eletrodomésticos. Mexeu os olhinhos e o boneco derreteu para se tornar o colchão velho colocado na frente da casa enfeitada. Deu dois passos, saindo da proteção do viaduto e parou quando viu uma estrela cadente. Pisca. Pisca. Pisca. Os olhinhos se acostumando às visões da noite fria; era apenas um aviãozinho, tão pequeno visto dali, que bem alto riscava o céu. Seu corpo começou a tremer de frio, as buzinas estridentes feriam seus tímpanos. A dor no estômago aumentava. Até a cola que disfarçaria essa dor lhe roubaram. De repente, suas pernas foram perdendo as forças, e seu corpinho foi envergando à beira da avenida, se amontoando na calçada. As pessoas passavam por ele, e não enxergavam, mas desviavam. Sua respiração dificultou, e as luzes das casas começaram a ficar disformes, simulando um arco-íris. Pisca. Pisca. Pisca. Não posso dormir. Pisca. Pisca. Pisca. Ainda preciso encontrar minha mãe. Pisca. Pisca. Pisca. Uma imagem desfocada foi se tornando nítida. Era um papai noel que atravessava a avenida, às suas costas algumas pessoas em passos ritmados. A figura bonachona e os outros se aproximaram, quando o foco voltou a se perder até sumir.


Havia vozes ao seu lado. Seus olhos lutavam para se manterem fechados. Ele lutava por continuar enxergando. Já não sentia tanto frio. Minutos de burburinho que pareceram dois séculos, e ele sentiu seu corpo ser erguido. Um líquido encostou em sua boca. A água umedecendo a garganta e o corpo tiritando menos: os olhos se entregaram. Abriram.


Havia uma mulher, feições delicadas, vestido azul, que lhe amparava a cabeça. Havia homens, comuns, que seguravam, cada um, comidas diferentes. E à sua frente, o homem de vestes vermelhas oferecendo uma sacola transparente, com roupas e um boneco, que o menino trouxe para debaixo da coberta desconhecida que lhe aquecera.


O menino só então se lembrou de desejar Feliz Natal.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Conto Telefonemas no Histórias Possíveis

O Histórias Possíveis é uma revista literária que publica narrativas inspiradas por notícias. Nasceu assim, com uma idéia simples mas genial.

Quantas vezes não nos pegamos diante de um papel em branco (ou tela em branco), pensando no que escrever. E basta uma palavra ou uma frase de jornal para acender a idéia mais fantástica.

Mês passado, a revista completou 1 ano no ar. Hoje saiu a edição 32 que traz um Especial de Natal com contos ligados ao tema, escritos pelos autores fixos da revista; além dos textos de mais três autores convidados.

E entre os convidados, vocês irão me encontrar, com o conto Telefonemas.

Um convite meu: leiam!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Amor em cubos de gelo

Nada mais angustiante para um escritor --ou pretenso escritor -- do que ver a gaveta cheia...

Os contos que lotavam minha gaveta virtual (meu pen drive) decidi, há uns seis meses, reunir em livro. Claro que ainda está inédito. Estou esperando o momento certo (que nem eu sei bem qual é) para me jogar nessa corrida literária. Por enquanto, é bom saber que eles não estão mais soltos, que agora formam um único volume, coesos, unidos.

O título: Amor em cubos de gelo.

Dividi o livro em duas seções: "Líquido" e "Sólido" e agrupei 22 contos que falam de relações de todo tipo, do amor em pequenos e grandes gestos, da falta de amor.

Há dois contos que estão no livro que são os textos premiados no Prêmio Cataratas e no Concurso da Fundação Cultural de Canoas.

Assim, para ter a sensação de que ele deixou um pouco a gaveta, coloco seu nome aqui no blog: nesse post e aí ao lado.

Espero que um dia eu possa relembrar esse post, para avisar do seu lançamento ao mundo... :)

domingo, 16 de novembro de 2008

Meu conto com Menção Honrosa no 9º Concurso de Literatura de Canoas

Uau!!!!!!!!

Que fim de semana maravilhoso!!!!!

Parece repeteco, mas não é! Acabei de descobrir mais um resultado de concurso. E adivinhem quem está lá novamente. Euzinha !!!!


Meu conto "Pequenos detalhes" recebeu Menção Honrosa no 9º Concurso de Literatura da Fundação Cultural de Canoas.


Mil saltos de alegria !!!!!!


Um agradecimento público à Livia Garcia-Roza. Lembro o quanto ela elogiou esse texto, quando o apresentei para ela. Posso dizer que meus escritos têm duas fases. A segunda fase começou com a oficina da Livia, com suas palavras de apoio e carinho. Minha querida escritora, você destruiu o peso que haviam colocado sobre mim, inibindo meus sonhos.


Para você, querida Livia, todo o meu carinho e o meu agradecimento. Se essa pequena escritora está desabrochando, devo isso a você.


O resultado do concurso pode ser conferido no link do Ficção de Gaveta.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Meu conto em 7º lugar no Prêmio Cataratas

Uau! três vezes, ou seria melhor, sete vezes.

Saiu o resultado do Prêmio Cataratas 2008. O resultado pode ser conferido no meu novo blog que lancei este mês só para centralizar os concursos literários e seus resultados. O novo blog é o Ficção de Gaveta, para incentivar todos aqueles que estão com a gaveta transbordando.

Mais por que o Uau!? É simples, meu nomezinho, ou melhor, meu querido conto "O envelope azul" está entre os premiados. Fiquei em 7º lugar. Podem dizer assim: poxa, mas tudo isso por um 7º lugar. Não, tudo isso por mais um prêmio, por um 7º lugar entre tantos contos inscritos, e que devo estar no caminho certo. E o velho sonho de menina vai se tornar realidade depois de 21 anos em outros caminhos não-literários.

O resultado do Prêmio Cataratas pode ser conferido no link do Ficção de Gaveta.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Resenha na revista Discutindo Literatura (setembro)

Eu e essa minha falta de tempo. Só ontem consegui terminar a Discutindo Literatura de setembro (edição nº19). E qual não foi minha surpresa, já no final da revista, ao ler, na seção Resenha do Leitor, um texto que havia escrito sobre o livro Tudo que eu queria te dizer da Martha Medeiros.

Eu havia publicado essa resenha no site http://www.leialivro.com.br/, em junho, e havia me esquecido dela. Acho que teve um problema com meu endereço de e-mail. Não fiquei sabendo que o texto havia sido selecionado como uma das melhores resenhas. E como prêmio final, a publicação na revista.

Só não gostei muito do título que eles deram, acho que ficou clichê ("Correio da alma"). Mas tudo bem. Valeu a surpresa. Se quiserem ler a resenha, ela está aqui no blog.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Conto "Retrato na estante"

O conto abaixo recebeu Menção Honrosa no 13º Concurso Literário do Servidor Público do Estado do Rio de Janeiro, promovido pela Fesp. Foram 401 contos inscritos. Servidores públicos das três esferas, domiciliados no Rio de Janeiro.

Obs: Fiz umas pequenas correções no texto, que só percebi depois que ele dormiu mais alguns meses na gaveta, a mesma de onde havia saído para a Antologia dos contos vencedores.

Retrato na estante
Ana Cristina Melo

Ele me observa sobre a estante sem ter coragem de me tocar. Sempre estive à frente de Virginia Woolf, entre Kafka, Flaubert e Drummond. Nunca entendi essa sua forma de arrumar os clássicos. Foi a única coisa de que me arrependo. Não ter lhe questionado qual era seu critério.

Hoje sou apenas esse retrato na estante. Não restou nenhuma roupa, nenhum vestígio. Mas ele ainda necessita de minha presença. Da necessidade de me encurralar entre suas histórias.

Tudo começou há cinquenta anos. Até eu me surpreendo com esse meio século que se passou. Tinha dezoito anos, dez a menos que ele.

Eu era apenas uma menina com sonhos, presa a uma pacata cidade de interior. Ele chegou na rodoviária sem bagagem, mas trazia seu projeto muito bem engendrado.

Eu não devia estar naquela praça. Normalmente não estaria ali, mas naquele dia havia decidido sair de casa. Tinha uma ansiedade soprada pelo destino. Havia uma celeridade em meus atos e, há algum tempo, o ar sem pressa daquele lugar me sufocava.

Acho que fui a primeira a vê-lo descer do ônibus. E acho que fui a única que ele enxergou. Dirigiu-se a mim e seus cabelos loiros brilhavam tanto ao sol, que tudo parecia uma cena dos filmes que eu assistia na praça, na única sessão mensal.

Perguntou-me sobre um lugar que pudesse pernoitar. Hipnotizada com seus olhos verdes, levei-o até a pousada de meus pais.

Em sua ficha, amalgamados apenas o nome Arnaldo, um sobrenome estrangeiro e a palavra escritor. Três palavras que me encantaram. Nunca ouvira falar a seu respeito. Naquele fim de mundo não se falava de literatura. Por curiosidade li Monteiro Lobato e Machado de Assis. O diploma do colegial servia para enfeitar a parede da sala de minha mãe. Tive curiosidade em conhecê-lo de perto. Tocá-lo, meio que para descobrir se escritor era gente como nós.

Fui ao seu encontro no quarto onde se recolheu, logo após pagar uma semana de hospedagem. Bati duas vezes e ele abriu com um sorriso largo, um pouco torto no dente canino. Antes que eu inventasse uma desculpa para justificar meu impulso, ele me perguntou se eu o acompanharia pela cidade.

Concordei. Mostrei-lhe o pequeno comércio, no qual ele comprou algumas peças de roupa. Não havia muito o que mostrar – a praça com seu coreto, a feira de artesanatos e as cachoeiras.

Ali na queda d’água menos visitada, atrás da pedra que eu usava para me esconder nas brincadeiras de criança, fui surpreendida com um beijo. Não fora meu primeiro, mas certamente fora o mais intenso. Era loucura, eu sabia, mas havia me apaixonado por aqueles olhos verdes. Suas palavras me causavam torpor e seus beijos me roubavam daquela realidade da qual há algum tempo eu me imaginava fugindo.

Namoramos atrás daquela pedra, por toda aquela semana, sem que avançássemos mais do que os seus toques ousados em meu corpo. No último dia, propôs-me que fugisse com ele. Não o conhecia, não sabia de onde ele vinha, nem para onde ia. Apenas desejava – como se tivesse querido isto no ventre de minha mãe – não morrer naquele lugar.

Combinamos tudo e, assim como ele fez, parti dali com a roupa do corpo. Apenas uma bolsa com algumas lembranças. Entrei no ônibus que seguia para a cidade vizinha. Ao descer, ele me esperava. Dali seguimos para muito longe.

Ele me comprou roupas e até um nome. Minha identidade continuou a me exibir como Angelina, mas Arnaldo não gostava de meu nome e disse que eu passaria a me chamar Virgínia.

Foi a primeira concessão que fiz. Meu pequeno grande erro. Viajamos de cidade em cidade, sem que ele me tornasse sua mulher. Disse que só o faria quando nos casássemos.

Eu enlouquecia pensando no momento em que me entregaria a ele. Era meu único desejo e objetivo. Não o percebi me moldando. Cortando meus cabelos longos e pretos e deixando-os curtos e castanhos. Decidindo minhas roupas e escolhendo o que eu deveria comer. Determinando a hora em que eu deveria acordar e me recolher. Adaptando meu paladar para comidas e bebidas. Plasmando minhas frases e pensamentos.

Um mês depois de fugir com ele, nos casamos num lugar cujo celebrante falava uma língua de que entendi poucas palavras.

Ele me levou naquela noite para um hotel luxuosíssimo, e subiu comigo em seus braços para a suíte. O quarto tinha uma grande cama de dossel coberta por um cortinado de voile. Toda a madeira era trabalhada com pequenos labirintos. A mesma madeira, escura, sobressaindo no cortinado branco. Uma cama assim não me parecia real, igual a mim, que me sentia irreal diante de tudo que acontecera naqueles últimos dias: a fuga, as aulas, a cerimônia de casamento.

Em pé ao lado da cama, ele me despiu completamente, deitando-me em seguida. Meu corpo estremeceu com o contato da pele quente com os lençóis frios de cetim. Ele se sentou e em vez de me tocar, se inclinou para a lateral da cama, e, de dentro de um jarro, retirou pétalas que pareciam congeladas, esfregando-as sobre mim. Meu corpo estremeceu mais uma vez.

Eu o desejava, com a mesma intensidade do medo que eu tinha do que iria acontecer. Ele se despiu e era a primeira vez que eu conhecia a nudez de um homem. Não houve carícias nem palavras. Ele se pôs sobre mim, e mal senti seu falo rijo me tocar, e o tive alcançando o meu íntimo, num só movimento. Nunca esqueci aquela dor, e acho que era esse o seu objetivo.

Em vez de gozo, escorri-me em lágrimas.

Na manhã seguinte, acordei com Arnaldo alucinadamente teclando uma velha máquina de escrever. Fiquei na cama sem ter coragem de me aproximar. Na realidade, me perguntava o que fazia ali. Talvez tenham se passado umas duas horas até que ele impelisse silêncio à máquina. Levantou-se e me viu. E se aproximou ignorando o quanto eu tremia e pedia para que ele não o fizesse. Deu-me todas as carícias e sensações que eu imaginara sentir da primeira vez. E, quando copulamos, foi como se nada de mais fantástico pudesse existir.

E assim aconteceu nas vezes seguintes. Por um, dois, muitos anos. Eu ia aonde ele queria, comia a comida que ele escolhia, velava seu trabalho na máquina, enquanto passeava os dedos pelas dezenas de livros de sua biblioteca. Como prêmio, na cama ele me impelia a sensações indescritíveis. E eu sempre sabia quando seria levada para o quarto. Era quando ele pegava um retrato meu que ficava na estante, e passeava os dedos pelo meu corpo inerte.

Desde a primeira semana de casamento, decidiu que eu precisava conhecer as Letras. E toda noite após termos relações, ele lia um trecho de algum livro para mim. Eu me excitava em reconhecer a capa antes perdida entre tantas outras, e me sentia escolhida, como aquele livro. Eu buscava entender e interpretar com prazer cada história. E ele se alimentava disso. Assim conheci os grandes, os clássicos, os inesquecíveis. De contos a romances. De poemas a peças teatrais. Os livros em quase sua totalidade estavam na língua pátria dos escritores. Ele me dava sua interpretação, portanto nunca soube se eram apenas idiossincrasias do que sua verve crítica considerava como perfeito.

Um dia, após sete anos, eu desejei filhos e lhe disse isso. Ele me olhou feroz. Seus olhos pareciam brasas. Puxou-me pelos cabelos para o andar de cima. Despiu-me como na primeira noite, e se embrenhou para dentro de mim sem prenúncios. Suas únicas palavras foram: “Nunca mais deseje nada”. Dormi entre lágrimas e a lembrança da dor, que, então, descobria ser minha punição.

Na manhã seguinte, ele teclava violentamente sua máquina de escrever. E mais uma vez, tomou-me como o mais voraz dos amantes. E mais uma vez eu esqueci.

Mas depois daquela noite, algo de diferente aconteceu em nós dois. Ele se sentiu poderoso para escrever e me dizia que nada em minha vida, antes de o ter conhecido, era digno de ser escrito. Intitulava-se meu sopro de vida, meu criador. Eu comecei a desejar um ar diferente, que não era respirado dentro daquelas paredes.

Não tardou para ele perceber e eu pressenti o que iria ocorrer, pela crueldade do seu olhar. Sussurrei que não o fizesse, mas ele ignorou. Na manhã seguinte, a máquina em frenesi. Mas não havia mais conivência. Ele, então, saiu e trancou a porta.

A partir daquele dia, ele me manteve enclausurada naquele quarto. Vinha toda noite, e eu nunca sabia quando ele me tocaria amavelmente ou.

Eu enxergava todas as estações pela janela do quarto, e me acostumei a isso, sem perceber que houvera uma liberdade, num tempo em que ele não existia.

As histórias continuavam toda a noite, após ele me possuir, sem que eu fosse capaz de voltar a sentir prazer naquelas palavras.

Houve um tempo em que ele não se satisfez com a minha resignação. Ele necessitava de revolta, de instabilidade para produzir poder para sua escrita. Ele não era capaz de criar personagens verossímeis, precisava tê-los em carne e osso e manipulá-los, para escrever sobre eles. E ele buscava essa revolta em mim, com sutilezas que destruíam minha alma.

Não havia grades na janela. Seria completamente possível eu fugir dali. Talvez me machucasse um pouco, mas sobreviveria. Por que não o fiz? Temia o desconhecido. Não lembrava que não havia tido esse temor quando fugira com ele.

Assim, me deixei ficar naquele quarto, por vinte estações. Um dia, antes de sair, ele permitiu ficar para trás um livro. Era sobre Sherazade. Passei a ler escondida enquanto ficava só. Ao finalizar a história, senti o quanto aquele quarto era sufocante. Cheguei perto da janela, mas não tive coragem de transpô-la.

Então, planejei tudo. Da mesma forma que ele o fizera. Levei-o ao máximo da fúria, dizendo-lhe tudo que eu desejava, que eu sentia. Revelei-me de carne e osso, uma personagem fugidia de seu romance. Ele enlouqueceu. Quebrou tudo em volta. Lacrou as janelas, por onde nunca tive coragem de fugir. Cortou a luz e a comida, e me abandonou ali por dias.

Quando voltou, me encontrou deitada, inanimada, enfim uma personagem eternizada.

A partir desse dia o vigio do retrato na estante. Ele me olha ainda com veneração, mas nunca mais ousou me tocar. O som da máquina de escrever nunca mais foi ouvido nessa casa.

A minha vingança é que ele nunca saberá se eu realmente existi ou se fui apenas fruto de sua imaginação.

(Versão atualizada em 07/05/2009)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Conto "O banco de Drummond"

Vivemos realmente tempos difíceis. Nem os óculos do Drummond escapam. Aproveitando o gancho, acho que está na hora de mostrar o texto a seguir.

O conto “O banco de Drummond” ficou em 1º Lugar no 2º Concurso de Literatura da Cidade de Gravatal.

Este é um conto antigo, um dos primeiros que escrevi. Lapidando daqui, cortando dali, o resultado ainda não me satisfez. Fiquei na dúvida se o publicava aqui, mas acho que preciso me desligar dele, para conseguir encontrar sua forma perfeita.

Espero que gostem!

O banco de Drummond
Ana Cristina Melo


As ondas se formavam longe e chegavam à praia num convite ao mergulho. Sobre um banco no calçadão, a estátua de metal em tamanho natural, de Carlos Drummond de Andrade, espelho do que o poeta fazia ao entardecer, meditando ou simplesmente apreciando o mar. Ao seu lado, Cirilo, remoendo lembranças e digerindo incertezas.

“Pena que você está de costas, o mar está tão bonito hoje, amigo! Parece que nem presenciou aquela agressão de ontem”.

“Que idéia daquela idosa reagir àquele pivete? Não perdeu a bolsa, mas ganhou alguns hematomas. Aquele menino não teve mãe... ou teve apenas quem o parisse e o jogasse nesse mundo”.

Cirilo continuava seu monólogo, aguardando o discursar de seu companheiro.

Sentava-se naquele banco, no calçadão, em frente ao mar de Copacabana, há uns oito anos. Já fazia parte da paisagem do lugar, assim como Drummond. A quem perguntasse, Cirilo respondia que vinha diariamente, de 7h às 10h, para visitar o amigo. Apiedou-se dele desde o dia que o deixaram ali à própria sorte. Houve até festa, veio o Prefeito. Depois disso, ninguém mais apareceu; só Cirilo que vinha sempre.

Tinham longas prosas. Falavam de política, das lindas mulheres se bronzeando, dos atletas de calçadão, de livros, principalmente de livros. Certa vez, Cirilo recitou ao amigo o excerto de um poema.

– Parece você, saído de ti. Ouça: “Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”.

Foi numa manhã de dezembro que Cirilo viu seu amigo proseando com um menino de uns sete anos. Era segunda-feira, mas havia no garoto o viço de fim de semana, quando todas as alegrias nos são permitidas.

– Oi! – disse Cirilo.

– Oi! – o menino respondeu com pouco interesse.

– Bonito dia, hein!

– É. Se eu tivesse uma bicicleta, adoraria andar nesse calçadão.

– Não tem? – o menino negou com a cabeça.

– Por que não pede?

– Deixei de pedir quando entendi que minha mãe não teria condições para me dar.

– Ah!... Meu amigo não quer papo, hoje, não é?

– Que amigo? – o menino o olhou incrédulo.

– Ora, ele! – apontou para a estátua como se de gente se tratasse.

Pensou em responder que a estátua não falava. Perspicaz, se calou. O moço devia ser maluco, vivendo com um amigo imaginário.

Mudaram de assunto. Pouco depois, o menino se foi. No dia seguinte, Cirilo o encontrou no mesmo lugar. Ficou com ciúme do amigo que o traía.

– Você de novo? – Cirilo não estava muito cordial.

– Sim.

– Por que está aqui?

– Para me despedir.

– Do quê? – Cirilo ficou intrigado.

– Da cidade. Minha mãe veio para cá ainda menina, sozinha. É nordestina. Ela conta que tinha quinze anos quando chegou. Foi um conhecido de meu avô que trouxe, para trabalhar na casa dele. Mas logo a patroa a dispensou e ela se viu sozinha, sobrevivendo de faxina e morando num quartinho sem janela. – o menino relatava a vida da mãe, enquanto acompanhava o movimento do mar, como se achasse ali as palavras – Ela sempre me conta que a primeira alegria que teve foi ver o mar. Nunca teve coragem de entrar. Eu já cheguei bem perto. Tentei entrar, mas uma onda me pegou. Acabei ralando o joelho. Fiquei assustado e nunca mais voltei.

Cirilo ouvia o menino tagarelar sua vida, mudo, mas atento.

– Num dia de folga, conheceu meu pai. Disse que ele falava bonito. Apaixonou-se, e quando minha mãe ficou grávida, ele desapareceu... Luta muito para me criar. Eu me viro sozinho durante o dia, mas às vezes nos falta comida. Ultimamente, temos sorte, conseguimos quentinhas na Igreja. Minha mãe aproveitou para juntar dinheiro e comprar duas passagens. Diz que se é pra passar necessidade, que seja na terra dela. Vamos embora na sexta-feira... Sabe, moço, estive olhando as ondas que vêm e vão e me fiz uma promessa: um dia eu volto.

Uma pequena lágrima lhe escorreu na face. Mas logo tratou de enxugá-la. E meio que saindo do transe, espevitado, perguntou à Cirilo:

– E você, o que faz aqui todo dia?

– Faço companhia ao meu amigo. A solidão traz um gosto de vazio. Fiquei sozinho por muito tempo. Lembro que conheci uma moça. Bonita, faceira, tinha fogo nos olhos, jeito de guerreira. Eu trabalhava numa biblioteca. Ela era doméstica e eu a perdi. Não lembro por quê. Um dia me acidentei, acordei no hospital depois de semanas. Acho que estive em coma, foi o que disseram. Eu não tinha ninguém. Só me lembrava vagamente de onde morava e trabalhava. Lembranças completas, mesmo, só as bem antigas. Ah, que pena serem tão imprecisas as recordações de minha morena! Quando saí do hospital, fui demitido. Aí vim para cá e encontrei meu amigo. Fiquei com pena dele.

Cirilo sussurrou no ouvido do menino:

– Ele é caladão assim, mas sempre foi muito inteligente. Na minha opinião é um poeta... E você, sabe empinar pipa?

– Sei, mas não tenho nenhuma. – Não havia vestígio do ar sofrido, era apenas um menino.

– Amanhã vou trazer uma para empinarmos juntos.

No dia seguinte, Cirilo chegou com a pipa mais linda que o pequeno havia visto. Brincaram juntos toda a manhã. Mais um dia e Cirilo lhe trouxe uma bola, e brincaram na areia. Na sexta-feira, Cirilo lhe deu um livro de Monteiro Lobato. Disse a ele que guardasse muito bem os seus presentes. Era tudo do que precisaria para ser feliz: de alegria e sonhos.

O menino se foi. Viajou com a mãe, levando consigo seus tesouros. Nunca esqueceria Cirilo. Um dia haveria de contar dele para a mãe. Cirilo talvez esquecesse o menino. Tinha muito com o que se preocupar.

Calado e pensativo, Drummond era o único que sabia do segredo que nenhum dos dois fora capaz de descobrir.

sábado, 28 de junho de 2008

Conto "Um pequeno anjo"

Um pequeno anjo
Ana Cristina Melo

“Qual o nome da criança?”, perguntei por hábito profissional. “Ainda não tem. Você pode escolher”, respondeu-me a mulher. Só então percebi melhor sua aparência. Não era muito alta, pele clara, cabelos loiros com a raiz castanha há muito exposta, presos num rabo não muito caprichado. O vestido largo, típico de grávida, não estava sujo, mas demonstrava pobreza. Percebi uma certa angústia, movimentos arrastados e um olhar estranho, que me avaliava.

O bebê no seu colo estava enrolado num pano creme, em nada igual às mantas bordadas e enfeitadas dos recém-nascidos. Levantei e me debrucei sobre o balcão, como faziam todos os que passavam por ali, ansiosos por invadir a privacidade da minha mesa. “É menina?”, perguntei com a intuição obtida pela única fita rosa que discretamente enfeitava aquela coberta. “É”, respondeu-me sem emoção. Abaixei o pano que cobria o rosto do bebê. Dormia tranquilamente. O desejo antigo da paternidade me voltava, em lembranças do que uma gargalhada desses pequenos pode nos provocar. Fitei a pele delicada, o rosto alvo e de traços perfeitos. Não pude resistir à inveja: desejei que fosse minha.

Aquela sexta-feira, vinte e dois de agosto de mil novecentos e noventa e sete, deveria ter sido um dia como outro qualquer: certidões de nascimento, de óbito, autenticações, firmas reconhecidas, procurações e tantos outros serviços cartorários mais e menos frequentes.

Não é hábito trabalharmos em todos os lugares de uma só vez. De tempos em tempos, revezamos em cada setor. O que menos me agrada é o de certidões de óbito. Depois desses trinta anos de ofício, iniciados no primeiro mês da minha maioridade, já sonho com a aposentadoria. Há muito concluí que para trabalhar ali o sujeito precisa ser muito frio. Você está lidando com a emoção das pessoas. Tudo muito à flor da pele. Os mais comuns são os despachantes, enviados pelas funerárias. Alguns com perfil de urubu. No mais, já presenciei filha que, entre lágrimas, soluçava a cada informação que eu pedia. “Deixou bens?”, “Só a ca-si-nha que mo-ra-va”, “Fez testamento?”, “Não. A-cho que nnnnão!”. Também já me assustei com a felicidade de um homem que me informava sobre o óbito da esposa. Tantos outros indecifráveis, frios, indiferentes, calejados talvez. Muitos precisam sustentar a base da família que ameaça ruir. O caso mais esdrúxulo que testemunhei foi o de uma mulher um tanto maltratada, mas que por baixo das roupas sem atrativos ainda estava inteirona. Dona Irene, nunca me esqueci do nome. Essa, quando perguntei “Deixou filhos?”, respondeu sem hesitação: “Meus, são três. Agora, das piranhas que ele frequentava, como vou saber? Acho até que vai faltar alça no caixão do infeliz pra tanta viúva”.

O melhor lugar do cartório era onde eu estava quando Joana surgiu com o bebê. Ali normalmente eu convivia com homens apenas felizes, outros radiantes, desesperados ou completamente apáticos. Muitos desandavam a mostrar foto do filho, orgulhosos de suas crias. Outros pareciam entregues a uma droga pesada e achavam graça até de uma mera pergunta “Trouxe a DN?”. “Engraçado o nome dessa, cara, mas não conheço. Vim sozinho”. “Senhor, a Declaração de Nascido Vivo?”. Mulheres que pariam em casa chegavam com vizinhas para servir de testemunhas. Outras descarregavam um saco de reclamações dos ordinários que não queriam assumir seus filhos.

Joana veio diferente. Não sorriu, não reclamou da falta do pai da criança, apenas pediu que eu escolhesse o nome do seu bebê. Aleguei que não podia, mas ela insistiu. Achando que não faria mal, disse apenas: “Ela tem o jeitinho de Angela”. “Pois, então, pode colocar aí, Angela dos Santos, filha apenas de Joana dos Santos”. Surpreso, sem argumento, peguei a DN, que indicava o nascimento dois dias antes no Hospital de Bonsucesso. Para que pudesse ser registrada ali, precisava ter nascido ou morar na região. Provavelmente a mãe também morava por perto. Pensei logo em alguma favela das muitas que existiam no bairro. Entreguei-lhe o registro com a sensação de que Angela iria trilhar o mesmo caminho da mãe. Ela pegou o papel e se retirou. Não houve pagamento nem agradecimento. Apenas saiu.

Pensei em Joana e Angela quase o dia todo. Aquele bebê me fez lembrar do nascimento de meu irmão caçula, já órfão de pai, e que encontrou em mim, quinze anos mais velho, a referência masculina. Quando me casei, mamãe decidiu se mudar para o interior, próximo à irmã. “É um lugar melhor pra eu criar o Paulinho!”. Quando me separei, comecei a perceber a solidão rondando minha rotina.

Findo o expediente, estava distraído, esperando meu ônibus, quando senti alguém se aproximar. A mesma voz me abordou. “Fica com ela”. Olhei para o lado e Joana segurava Angela nos braços, da mesma forma que pela manhã. Nenhuma das duas havia trocado de roupa. A diferença estava no olhar vivo e bem aberto da menina, recém-colocada no mundo. “Não entendi”, retruquei. “Fica com ela. Por favor”. Joana me estendia os braços com a menina como se fosse um mendigo suplicando um prato de comida.

Sem raciocinar, peguei-a no colo. Ainda vi de relance um esboço de sorriso e talvez uma lágrima discreta. Hipnotizado, fiquei olhando para o seu rostinho. Era linda. A filha que eu sempre desejei e Marisa nunca aceitou ter. Oito anos de casamento. Nasci querendo ser pai. Marisa nasceu querendo ser fútil. Dia passado no shopping e na academia. Noite gasta com cremes e cuidados. Não aceitava que nenhum centímetro de seu corpo esculpido sofresse qualquer dano. Lembro bem do escândalo que foi o dia em que percebeu uma estria aparecendo na coxa. Gastou uma boa fortuna (minha) em tratamento estético. Na cama nos entendíamos bem, mas fora dela era um desastre. Eu procurava uma família; ela, uma fonte de renda e diversão. Acho que custei muito a me separar. Só percebi isso depois que desfrutei da sensação de alívio ao vê-la longe, mesmo tendo que pagar mensalmente pela minha liberdade.

Quando levantei o rosto, recuperado, Joana havia sumido. Nenhum sinal. As pessoas que aguardavam no ponto já não eram as mesmas. Fiquei esperando ali por um bom tempo, na esperança de que ela voltasse. “Ela sabe onde trabalho”, pensei ao desistir de esperar. Deixei-me guiar pelo instinto. Comprei na farmácia um pequeno estoque de produtos para o bebê: mamadeiras, fraldas, creme antiassaduras, leite, chupeta e sabonete. Na loja de departamentos me abasteci de macacões e cueiros. Engraçado foi terem me permitido furar a fila por estar com o bebê no colo. Era tudo tão novo, que aceitei. Ao reparar em todas aquelas compras, percebi o exagero, pois a mãe voltaria, certamente que voltaria. “Tudo bem, darei de presente a ela”, resolvi.

Em casa, ao desenrolá-la, percebi dobrada dentro da manta a Certidão de Nascimento, acompanhada de um bilhete. Angela estava agitada, nada que um banho agarrada ao meu colo, como se eu fosse a mamãe canguru, não lhe desse o sono merecido. Eu havia esquecido de comprar a banheira. A mamadeira, ela tomou dormindo. Começávamos a nos entender muito bem. De volta ao silêncio interrompido apenas pela respiração dela, sentei para ler o bilhete escrito com alguns garranchos e uma urgência aparente. “Traí meu namorado e Angela nasceu. O pai dela morreu. Acho que foi meu namorado que o matou. Não posso ficar com ela. Cuide dela pra mim”. Adormeci sentado, lendo e relendo aquele bilhete, olhando e me apaixonando por minha menininha.

Na segunda-feira, já havia conseguido uma babá, indicada por um amigo, para cuidar de Angela durante o dia. Dalva era muito carinhosa. Mãe de três filhos, já crescidos, tratava da menina como se fosse de uma neta. A competência me custou caro, estava quase no vermelho, mas me sentia extremamente satisfeito.

Joana, só voltei a ver um mês depois, na manchete de um jornal desses tipo torneirinha de tragédia. Sua foto estava estampada com a chamada sensacionalista “morta pelo namorado no morro da Tijuca”. O texto dizia que ela estava escondida, fugindo do namorado, há uns oito meses. Resolveu voltar para casa, achando que ele tivesse esquecido dela. Uma vez informado onde seria o enterro, fui até lá, sorrateiro. Quase ninguém apareceu. Ninguém que demonstrasse a emoção de um familiar. Joana foi sepultada e se tornou apenas um nome na certidão da minha menina.

Ainda trabalhei naquele cartório por quatro anos. Depois consegui transferência para um cartório de Niterói, para onde me mudei. A casa em que moramos é simples, pois os gastos são grandes, mas o quintal é a paixão de Angela, que completa hoje nove anos. Está bonita a danada! A pele clara e o cabelo castanho são iguais aos meus. O nariz é diferente, bem parecido com o da mãe. Conto os minutos pra encerrar o expediente no cartório. Adoro ouvir sua voz ao chegar no portão. Me recebe com uma chuva de beijos. A casa ficou iluminada, coisa de anjo.

Na mesinha de canto tem uma pequena pintura de Joana, que pedi a um artista do centro do Rio para fazer, a partir dos fragmentos de minha lembrança e da foto do jornal. Foi no mesmo dia em que vi Dona Irene (aquela que dividiu a alça do caixão do marido) passeando, sarada e definida, agarrada num garotão de vinte e poucos anos. A cena me divertiu e me fez lembrar da frase de um amigo: “as agruras são mais amargas do que definitivas”. Provei dessa verdade ao me livrar da Marisa, que se casou com um dono de restaurante.

Está tudo perfeito. Estou casado há dois anos com Vera, que se apaixonou por mim após algumas autenticações e outros tantos reconhecimentos de firma. Ela e Dalva estão me ajudando a arrumar a casa para a festa de minha filha. E no fundo de minha consciência, sei que onde estiver, Joana me sorri, e não permitirá que percebam o deslize da presença de meu nome na Certidão de Nascimento de nossa filha.

(versão atualizada em 02/05/2009)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Conto "A traição"

O conto abaixo recebeu o 1º lugar, em junho de 2006, no concurso Exercícios Urbanos, promovido pelo Portal Literal. O tema era futebol e uma mulher driblou todos os outros craques masculinos.

A traição
Ana Cristina Melo

( conto retirado, pois uma nova versão dele é parte integrante da antologia de contos Humor Vermelho 2 )

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Servidor das Letras - Cerimônia de Premiação

Esta noite foi muito especial. Participei da cerimônia de premiação do 13º Concurso Literário do Servidor Público do Estado do Rio de Janeiro, no qual fui laureada com um certificado muito significativo, e exemplares do livro Servidor das Letras - 2008, que reúne a antologia das poesias e contos vencedores, entre eles Retrato na estante, conto pelo qual recebi menção honrosa.

Na mesa estiveram presentes e nos enalteceram com felicitações emocionantes: Terezinha Lameira, vice-presidente da Fesp; Carlos Guimarães, subsecretário de Cultura (representando a secretária Adriana Rattes); Ivo Torres, poeta, escritor e coordenador do concurso; e Antonio Olinto, acadêmico e poeta, representando a Academia Brasileira de Letras.

Terezinha, com extrema simpatia, lembrou a importância desse concurso, que valoriza não só a Literatura, como também os servidores públicos. Enalteceu, ainda, o recorde de inscrições atingido nessa edição. O concurso premiou 26 trabalhos, selecionados entre os 1105 inscritos - respectivamente 401 contos e 704 poesias.

Ivo Torres, com visível emoção, ressaltou a abrangência do resultado, que premiou servidores de todas as esferas, ativos e inativos, mostrando o quanto foi importante a extensão do prêmio para as esferas municipal e federal.

Antonio Olinto falou da importância de se valorizar o livro, a própria Literatura, e principalmente a nossa língua. Recordou um episódio, quando esteve na Suécia, num congresso sobre língua portuguesa, reunindo representantes de vários países. Logo no início, um estudante levantou-se, pediu a palavra, e questionou com visível desprezo "O que estamos fazendo aqui, discutindo língua portuguesa? Para quê?". O mediador do evento imediatamente respondeu: "220 milhões de pessoas no mundo falam o português. A Suécia tem sete milhões de pessoas. A ninguém interessa aprender o sueco. Uma língua com 220 milhões de pessoas nos interessa, não acha?". Uma lição finalizada com a ordem para que o estudante voltasse ao seu lugar. A história serviu em perfeição para ilustrar a declaração de amor que Antonio Olinto fez a nossa língua, do alto da experiência de seus 89 anos. Lembrou, ainda, que é com letras, e com palavras, que se pensa e se ama. Portanto, há de se dar valor à língua e à nossa Literatura.

Após esta cerimônia maravilhosa, descemos à Sala Djanira, e entre conversas e a degustação do coquetel oferecido, apreciamos a exposição das artistas plásticas Maria Torres e Ermelinda de Almeida, conceituadas pintoras da arte naïf (ingênua). As 40 pinturas são de uma delicadeza ímpar, ressaltando profundamente a sensibilidade de suas autoras, reconhecidamente premiadas. Para quem se interessar, a entrada é gratuita, e a exposição está aberta à visitação até 04/07/2008.

domingo, 25 de maio de 2008

Conto "Paralelas" premiado no I Concurso Literário "Sergio Buarque de Holanda"

O conto abaixo foi meu primeiro prêmio, no I Concurso Literário "Sergio Buarque de Holanda", da Secretaria de Estado de Cultura São Carlos (SP). A premiação ocorreu em Novembro de 2005.
Espero que apreciem. Boa leitura!

Paralelas
Ana Cristina Melo

Na estrada, Rosaléia. Sua companhia apenas a lua, se despedindo, e os bichos do mato. Acorda às quatro da manhã. Mal tem o que tomar café. Sai em seguida. A caminhada é longa: seis quilômetros. Às vezes passa conhecido, que dá carona no lombo de uma égua. Mas coitada dela (da égua). É trecho pesado para a pobre carregar dois nas costas. Destino: a grande casa de taipa na Fazenda Boi Manso, onde leciona aos filhos do dono e dos seus colonos. A aula começa às sete.

Na estrada, Mariléia. Sua companhia apenas os bêbados, drogados e mendigos, que se perderam na madrugada, se perderam na vida. A lua está encoberta pelo nevoeiro. Ou será pela poluição? Animais pelo caminho, só os vira-latas. Acorda às quatro da manhã. Mal consegue tomar café. Sai em seguida. A caminhada até o ponto de ônibus é longa: dois quilômetros. De lá, são mais duas conduções. Ambas lotadas. Não há espaço para respirar. A vida pára dentro dessas lotações. Vinte e dois quilômetros ao todo. Destino: a escola pública Chão de Estrelas no centro da Capital, onde leciona aos alunos da região. A aula começa às sete.

Rosaléia chega à sua classe de alfabetização. Vinte e dois rostinhos dividindo esperanças e as mesmas carteiras. Amontoam-se como milho no paiol. Não há mais do que sete anos em cada um. Entre eles, destacam-se os filhos do dono – melhor vestidos, com melhor história. Mas é a única diferença. Ou talvez nenhuma. Para Tia Rosa é uma característica qualquer como a cor dos olhos, sexo ou altura. São todas crianças. Todas anjinhos. Todas um faixo de esperança.

Mariléia chega à sua classe de alfabetização. Vinte e dois rostinhos dividindo esperanças. Cada qual na sua pequena mesinha, mas tão coladas umas nas outras, que quase formam uma só. Não há mais do que sete anos em cada um. Entre eles, destacam-se os filhos da classe média, em situação de desemprego – melhor vestidos, com melhor história. Mas é a única diferença. Ou talvez nenhuma. Para Tia Mari é uma característica qualquer como a cor dos olhos, sexo ou altura. São todas crianças. Todas anjinhos. Todas um faixo de esperança.

Rosaléia pega o seu cotoco de giz. Tem que durar o dia. Separou um para cada dois dias. Já pediu ao dono da Fazenda, mas ainda não chegou nova caixa. Ali tudo é longe: as notícias, os produtos, a esperança. Mas um dia chega. Cabe a ela fazer-lhes esquecer, nesse momento, a dura realidade que vivem. Muitos estão descalços, cadernos doados, barriga vazia. São filhos de trabalhadores rurais, que lutam de sol a sol, sem muitas vezes conseguir completar a panela de comida. Tia Rosa divide o giz. Eles dividem a vida. São elite aqueles que possuem plantação no quintal. Pelo menos, tem o que comer.

Mariléia pega o seu cotoco de giz. Tem que durar o dia. Separou um para cada dois dias. Já pediu à Diretora, mas ainda não chegou nova caixa. Ali tudo é difícil: a modernização, os produtos, a esperança. Mas um dia chega. Cabe a ela fazer-lhes esquecer, nesse momento, a dura realidade que vivem. Muitos estão com sapatos furados, remendados, rasgados, doados. Só não estão descalços, pois têm que cumprir o uniforme: não podem entrar sem sapatos. Onde já se viu estudar descalço! Cadernos doados, barriga vazia. São filhos de desempregados, subempregados, desvalorizados, que lutam de sol a sol, sem muitas vezes conseguir completar a panela de comida. Tia Mari divide o giz. Eles dividem a vida. São elite aqueles que conseguem se virar. Pelo menos, em ter o que comer.

Tia Rosa não passa dever de casa. Sabe que dali, com algumas exceções, todos vão para a lavoura. Levantam enxadas, carregam fardos. Mas Rosaléia não ensina letras, ensina sonhos. Recusa-se a criar analfabetos funcionais. Faz cartazes, jograis, teatro. Traz a vida para a sala de aula.

Tia Mari não passa dever de casa. Sabe que dali, com algumas exceções, todos vão trabalhar, de uma forma ou de outra. Seja em casa tomando conta de irmãos, tão indefesos quanto eles; seja na rua a vender balas nos sinais ou até pedindo esmolas. Levantam bolinhas, espanadores, carregam fardos. Mas Mariléia não ensina letras, ensina sonhos. Recusa-se a criar analfabetos funcionais. Faz cartazes, jograis, teatro. Traz a vida para a sala de aula.

Rosaléia está no sertão. Ouviu falar de bolsa social, mas ali não chegou. Não para as suas crianças. Já ouviu falar de quem não precisa, que conseguiu. Enquanto isso, faz o social de dividir o pouco que tem: seu conhecimento. Suas crianças são brasileiras. É a cara do Brasil. Dali sairão cidadãos.

Mariléia está na cidade grande. Ouviu falar de bolsa social, mas ali não chegou. Não para as suas crianças. Já ouviu falar de quem não precisa, que conseguiu. Enquanto isso, faz o social de dividir o pouco que tem: seu conhecimento. Suas crianças são brasileiras. É a cara do Brasil. Dali sairão cidadãos.

Rosaléia e Mariléia, no asfalto ou na terra batida, não ensinam letras. Ensinam sonhos.