sábado, 28 de junho de 2008

Conto "Um pequeno anjo"

Um pequeno anjo
Ana Cristina Melo

“Qual o nome da criança?”, perguntei por hábito profissional. “Ainda não tem. Você pode escolher”, respondeu-me a mulher. Só então percebi melhor sua aparência. Não era muito alta, pele clara, cabelos loiros com a raiz castanha há muito exposta, presos num rabo não muito caprichado. O vestido largo, típico de grávida, não estava sujo, mas demonstrava pobreza. Percebi uma certa angústia, movimentos arrastados e um olhar estranho, que me avaliava.

O bebê no seu colo estava enrolado num pano creme, em nada igual às mantas bordadas e enfeitadas dos recém-nascidos. Levantei e me debrucei sobre o balcão, como faziam todos os que passavam por ali, ansiosos por invadir a privacidade da minha mesa. “É menina?”, perguntei com a intuição obtida pela única fita rosa que discretamente enfeitava aquela coberta. “É”, respondeu-me sem emoção. Abaixei o pano que cobria o rosto do bebê. Dormia tranquilamente. O desejo antigo da paternidade me voltava, em lembranças do que uma gargalhada desses pequenos pode nos provocar. Fitei a pele delicada, o rosto alvo e de traços perfeitos. Não pude resistir à inveja: desejei que fosse minha.

Aquela sexta-feira, vinte e dois de agosto de mil novecentos e noventa e sete, deveria ter sido um dia como outro qualquer: certidões de nascimento, de óbito, autenticações, firmas reconhecidas, procurações e tantos outros serviços cartorários mais e menos frequentes.

Não é hábito trabalharmos em todos os lugares de uma só vez. De tempos em tempos, revezamos em cada setor. O que menos me agrada é o de certidões de óbito. Depois desses trinta anos de ofício, iniciados no primeiro mês da minha maioridade, já sonho com a aposentadoria. Há muito concluí que para trabalhar ali o sujeito precisa ser muito frio. Você está lidando com a emoção das pessoas. Tudo muito à flor da pele. Os mais comuns são os despachantes, enviados pelas funerárias. Alguns com perfil de urubu. No mais, já presenciei filha que, entre lágrimas, soluçava a cada informação que eu pedia. “Deixou bens?”, “Só a ca-si-nha que mo-ra-va”, “Fez testamento?”, “Não. A-cho que nnnnão!”. Também já me assustei com a felicidade de um homem que me informava sobre o óbito da esposa. Tantos outros indecifráveis, frios, indiferentes, calejados talvez. Muitos precisam sustentar a base da família que ameaça ruir. O caso mais esdrúxulo que testemunhei foi o de uma mulher um tanto maltratada, mas que por baixo das roupas sem atrativos ainda estava inteirona. Dona Irene, nunca me esqueci do nome. Essa, quando perguntei “Deixou filhos?”, respondeu sem hesitação: “Meus, são três. Agora, das piranhas que ele frequentava, como vou saber? Acho até que vai faltar alça no caixão do infeliz pra tanta viúva”.

O melhor lugar do cartório era onde eu estava quando Joana surgiu com o bebê. Ali normalmente eu convivia com homens apenas felizes, outros radiantes, desesperados ou completamente apáticos. Muitos desandavam a mostrar foto do filho, orgulhosos de suas crias. Outros pareciam entregues a uma droga pesada e achavam graça até de uma mera pergunta “Trouxe a DN?”. “Engraçado o nome dessa, cara, mas não conheço. Vim sozinho”. “Senhor, a Declaração de Nascido Vivo?”. Mulheres que pariam em casa chegavam com vizinhas para servir de testemunhas. Outras descarregavam um saco de reclamações dos ordinários que não queriam assumir seus filhos.

Joana veio diferente. Não sorriu, não reclamou da falta do pai da criança, apenas pediu que eu escolhesse o nome do seu bebê. Aleguei que não podia, mas ela insistiu. Achando que não faria mal, disse apenas: “Ela tem o jeitinho de Angela”. “Pois, então, pode colocar aí, Angela dos Santos, filha apenas de Joana dos Santos”. Surpreso, sem argumento, peguei a DN, que indicava o nascimento dois dias antes no Hospital de Bonsucesso. Para que pudesse ser registrada ali, precisava ter nascido ou morar na região. Provavelmente a mãe também morava por perto. Pensei logo em alguma favela das muitas que existiam no bairro. Entreguei-lhe o registro com a sensação de que Angela iria trilhar o mesmo caminho da mãe. Ela pegou o papel e se retirou. Não houve pagamento nem agradecimento. Apenas saiu.

Pensei em Joana e Angela quase o dia todo. Aquele bebê me fez lembrar do nascimento de meu irmão caçula, já órfão de pai, e que encontrou em mim, quinze anos mais velho, a referência masculina. Quando me casei, mamãe decidiu se mudar para o interior, próximo à irmã. “É um lugar melhor pra eu criar o Paulinho!”. Quando me separei, comecei a perceber a solidão rondando minha rotina.

Findo o expediente, estava distraído, esperando meu ônibus, quando senti alguém se aproximar. A mesma voz me abordou. “Fica com ela”. Olhei para o lado e Joana segurava Angela nos braços, da mesma forma que pela manhã. Nenhuma das duas havia trocado de roupa. A diferença estava no olhar vivo e bem aberto da menina, recém-colocada no mundo. “Não entendi”, retruquei. “Fica com ela. Por favor”. Joana me estendia os braços com a menina como se fosse um mendigo suplicando um prato de comida.

Sem raciocinar, peguei-a no colo. Ainda vi de relance um esboço de sorriso e talvez uma lágrima discreta. Hipnotizado, fiquei olhando para o seu rostinho. Era linda. A filha que eu sempre desejei e Marisa nunca aceitou ter. Oito anos de casamento. Nasci querendo ser pai. Marisa nasceu querendo ser fútil. Dia passado no shopping e na academia. Noite gasta com cremes e cuidados. Não aceitava que nenhum centímetro de seu corpo esculpido sofresse qualquer dano. Lembro bem do escândalo que foi o dia em que percebeu uma estria aparecendo na coxa. Gastou uma boa fortuna (minha) em tratamento estético. Na cama nos entendíamos bem, mas fora dela era um desastre. Eu procurava uma família; ela, uma fonte de renda e diversão. Acho que custei muito a me separar. Só percebi isso depois que desfrutei da sensação de alívio ao vê-la longe, mesmo tendo que pagar mensalmente pela minha liberdade.

Quando levantei o rosto, recuperado, Joana havia sumido. Nenhum sinal. As pessoas que aguardavam no ponto já não eram as mesmas. Fiquei esperando ali por um bom tempo, na esperança de que ela voltasse. “Ela sabe onde trabalho”, pensei ao desistir de esperar. Deixei-me guiar pelo instinto. Comprei na farmácia um pequeno estoque de produtos para o bebê: mamadeiras, fraldas, creme antiassaduras, leite, chupeta e sabonete. Na loja de departamentos me abasteci de macacões e cueiros. Engraçado foi terem me permitido furar a fila por estar com o bebê no colo. Era tudo tão novo, que aceitei. Ao reparar em todas aquelas compras, percebi o exagero, pois a mãe voltaria, certamente que voltaria. “Tudo bem, darei de presente a ela”, resolvi.

Em casa, ao desenrolá-la, percebi dobrada dentro da manta a Certidão de Nascimento, acompanhada de um bilhete. Angela estava agitada, nada que um banho agarrada ao meu colo, como se eu fosse a mamãe canguru, não lhe desse o sono merecido. Eu havia esquecido de comprar a banheira. A mamadeira, ela tomou dormindo. Começávamos a nos entender muito bem. De volta ao silêncio interrompido apenas pela respiração dela, sentei para ler o bilhete escrito com alguns garranchos e uma urgência aparente. “Traí meu namorado e Angela nasceu. O pai dela morreu. Acho que foi meu namorado que o matou. Não posso ficar com ela. Cuide dela pra mim”. Adormeci sentado, lendo e relendo aquele bilhete, olhando e me apaixonando por minha menininha.

Na segunda-feira, já havia conseguido uma babá, indicada por um amigo, para cuidar de Angela durante o dia. Dalva era muito carinhosa. Mãe de três filhos, já crescidos, tratava da menina como se fosse de uma neta. A competência me custou caro, estava quase no vermelho, mas me sentia extremamente satisfeito.

Joana, só voltei a ver um mês depois, na manchete de um jornal desses tipo torneirinha de tragédia. Sua foto estava estampada com a chamada sensacionalista “morta pelo namorado no morro da Tijuca”. O texto dizia que ela estava escondida, fugindo do namorado, há uns oito meses. Resolveu voltar para casa, achando que ele tivesse esquecido dela. Uma vez informado onde seria o enterro, fui até lá, sorrateiro. Quase ninguém apareceu. Ninguém que demonstrasse a emoção de um familiar. Joana foi sepultada e se tornou apenas um nome na certidão da minha menina.

Ainda trabalhei naquele cartório por quatro anos. Depois consegui transferência para um cartório de Niterói, para onde me mudei. A casa em que moramos é simples, pois os gastos são grandes, mas o quintal é a paixão de Angela, que completa hoje nove anos. Está bonita a danada! A pele clara e o cabelo castanho são iguais aos meus. O nariz é diferente, bem parecido com o da mãe. Conto os minutos pra encerrar o expediente no cartório. Adoro ouvir sua voz ao chegar no portão. Me recebe com uma chuva de beijos. A casa ficou iluminada, coisa de anjo.

Na mesinha de canto tem uma pequena pintura de Joana, que pedi a um artista do centro do Rio para fazer, a partir dos fragmentos de minha lembrança e da foto do jornal. Foi no mesmo dia em que vi Dona Irene (aquela que dividiu a alça do caixão do marido) passeando, sarada e definida, agarrada num garotão de vinte e poucos anos. A cena me divertiu e me fez lembrar da frase de um amigo: “as agruras são mais amargas do que definitivas”. Provei dessa verdade ao me livrar da Marisa, que se casou com um dono de restaurante.

Está tudo perfeito. Estou casado há dois anos com Vera, que se apaixonou por mim após algumas autenticações e outros tantos reconhecimentos de firma. Ela e Dalva estão me ajudando a arrumar a casa para a festa de minha filha. E no fundo de minha consciência, sei que onde estiver, Joana me sorri, e não permitirá que percebam o deslize da presença de meu nome na Certidão de Nascimento de nossa filha.

(versão atualizada em 02/05/2009)

2 comentários:

Mário Marinato disse...

Olá, Ana. Aqui quem escreve é o Mário, seu aluno da pós graduação da Estácio.

Olha, adorei este conto, muito legal mesmo. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o personagem ser funcionário de cartório, coisa que fui durante longos cinco anos. Só isso já serviu para gerar empatia com o cara.

Além disso, seu jeito de escrever é bem legal, e até lembra um pouco o meu próprio (o que me leva a crer que escrevo bem!).

E, claro, que final! Quando o conto parecia ter terminado, ele chega e nos conta uma nova história. Legal pra demais da conta.

Vou recomendar este conto para as minhas leitoras lá do Sarcófago, pode ter certeza disso.

Parabéns por ele.

Ana Cristina Melo disse...

Oi, Mário.
Que bom que você gostou do conto. Em breve, publicarei outros. Sobre o duplo final, você é o segundo a me fazer essa observação. Bem legal! É muito bom ter esse feedback.
Bjs
Ana Cristina