Saiu uma matéria interessantíssima no caderno Prosa & Verso de ontem. Cheguei quase a desistir de digitá-la, pois é imensa, mas depois pensei: vale a pena, para dividir com os leitores do canastra. Então, as pílulas de hoje são um tratamento completo.
Trata-se da matéria feita em função da interferência que um editor pode ter no texto do escritor, motivada pelo lançamento de "Iniciantes" de Raymond Carver, a versão original, publicada por sua viúva, da outra que o lançou no mercado e foi drasticamente alterada por seu editor, Gordon Lish.
Então vamos à primeira parte dela, que traz a palavra do Editor.
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Até onde pode e deve ir a interferência de um editor no texto de um escritor? Quais os efeitos dessa intervenção numa relação já normalmente marcada por amor e ódio, respeito e desprezo? O assunto voltou à tona com o lançamento do livro “Iniciantes”, do americano Raymond Carver, editado em 2008 nos Estados Unidos em sua versão integral, bem diferente daquela enormemente cortada e publicada pelo editor Gordon Lish em 1981. Com a obra mutilada, Carver ganhou aplausos da crítica por sua escrita “minimalista” e, incensado, seguiu adiante. A versão original dos contos, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras, revela, porém, um Carver muito melhor, grandioso. Para amplificar o debate o Prosa & Verso convidou um editor e um escritor – ambos experientes – para que descrevessem, sob a prudência do anonimato, exigida em assuntos de trato delicado, suas impressões e histórias sobre a arte de tesourar e ser tesourado. São textos recheados de humor e farpas em estado bruto, sem medo da navalha. Com a palavra, O Editor e O Escritor.
A vida invisível
O Editor
Editores e garçons têm muito em comum: sua função é estar sempre ali, em volta do freguês, longe o suficiente para não atrapalhar a conversa, perto o bastante para não deixar faltar nada.
Editores e maestros também são parecidos: ambos estão a serviço de um artista e, pelo menos teoricamente, sua fama deveria ser a capacidade de manter-se no anonimato.
Editores, garçons e maestros trabalham na sombra. E são igualmente perseguidos pela tentação dos holofotes. Mas se a luz faz bem a orquestras e bares, em geral transforma editores em pobres mosquitos, fulminados por acusações de intervencionismo, ego inflado e até talento frustrado. Por isso é melhor nem assinar um texto como esse.
Editar é um exercício de desaparecimento. É submergir na lógica do autor, entusiasmar-se com suas ideias e, aqui e ali, fazer com que ele veja quando a coisa não funciona. O que, como se pode imaginar facilmente, quase nunca acontece na santa paz de uma casa editorial.
“Não” é a palavra que um editor mais usa, mesmo que a evite a todo custo. Com o tempo, ele acaba tornando-se um estilista da recusa: “esta vírgula está mal colocada”, “este parágrafo pode ser melhorado”, “aqui há uma barriga na narrativa”, “este título é impreciso”, “por que esconder isso do leitor?” – até o drástico “vamos trocar o final pelo começo?”
Numa frase destas pode estar o céu ou o inferno – fatalmente, mais o último do que o primeiro. Pois todos os autores, independentemente de sua importância e experiência, são um mesmo frágil estreante quando enviam ao editor seus originais.
É um momento sério de verdade, de exposição total, das fragilidades inevitáveis aos achados geniais. E aí, devo admitir, o jogo não é equilibrado: para o autor, ali está o investimento de seus últimos meses e anos, o que há de mais importante naquele momento e às vezes por toda a vida; para o editor, uma das muitas coisas importantes daquele momento. Mas, ao ler um original e trabalhar sobre ele, é preciso ter a convicção de que aquele é o único e a ele devemos toda nossa atenção.
Christian Bourgois foi um dos mais importantes editores franceses. Fundador da casa que leva seu nome, morreu em dezembro de 2007, com mais de 50 anos de estrada. Naquele ano mesmo, foi homenageado na Feira de Guadalajara e respondeu com um discurso comovente, que resume um pouco esta relação: “Acabo de usar, por vício, a expressão ‘meus’ autores. Ela realmente não é adequada: na verdade, se um autor sempre pode dizer ‘meu editor’ ou, num tom mais reverente, ‘meu caro editor’, como o faziam no século XIX os Flaubert, Balzac e Zola, acho que devemos desconfiar da linguagem corrente e saber que, no fundo, os autores não nos pertencem. Mas que nós, por nossa vez, devemos a eles fidelidade, atenção e gratidão pelo presente que nos dão a cada vez que nos confiam um novo manuscrito – o que não significa, bem entendido, que nos sintamos obrigados a calar nossas eventuais críticas nem publicá-los custe o que custar, cegamente. Muito pelo contrário. Nós devemos sempre fazer escolhas, afirmar nossas preferências, assumir nossas decisões, sempre sob o risco de desagradá-los.”
Sendo esta uma ciência inexatíssima, no fio da navalha, coleciono inutilmente histórias célebres de editores e seus autores. Digo “inutilmente” porque elas jamais se repetem. Nunca passei nada parecido com o que conta Bennett Cerf, o fundador da Random House, que ainda em seus primeiros anos na profissão viu Theodor Dreiser virar um cafezinho quente na cara de seu então editor por conta de um mal entendido sobre os direitos cinematográficos de “A tragédia americana”.
Mais próximos de nós, no entanto, são os dramas vividos por Michael Korda quando virou editor de Harold Robbins: num mesmo romance, um personagem era louro e moreno, tinha olhos verdes e azuis. Este tipo de percalço é comum nas narrativas longas, mas o que foge à regra é o nível de irritação do autor: Robbins respondeu que já fazia muito em escrever, os leitores que se virassem para dar um sentido àquilo tudo. E a Korda coube o tal papo da coerência interna.
Não escritores que escrevem livros costumam dar um trabalho danado. Por isso é preciso apoiá-los em dobro. Antes que alguém proteste sobre como este é um efeito deletério da “cultura das celebridades”, lembro que isso acontece há muito e por causas bem menos fúteis. Giangiacomo Feltrinelli, o lendário (e milionário) editor italiano que morreu acidentalmente numa ação terrorista do grupo de esquerda radical a que pertencia, levou para Fidel Castro a ideia de uma autobiografia prontinha. Seria realizada a partir de entrevistas e era só ele concordar com o que estava escrito. Os dois jogaram muito basquete juntos em Havana, falaram pelo cotovelos, Fidel embolsou um adiantamento polpudo para a época e, babau: jamais aprovou o livro.
Pois é bom lembrar: nem sempre o editor é o ceifador de palavras ou o gênio disfarçado. Ele também pode ser um personagem beckettiano, à eterna espera de um texto que pode não vir. Os editores de Trumam Capote na Random House esperaram 15 anos por “Answered prayers”, seu projeto proustiano ambientado na Nova York mundana. Do livro, conhece-se apenas quatro capítulos, escandalosos e marcados pela língua viperina do escritor de “A sangue frio”. Neste tempo, além dos nervos do editor, Capote consumiu U$ 250 mil em adiantamento e deixou de ganhar U$ 1 milhão, prometidos contra a entrega do livro.
Assim como o jovem Antoine Doinel, que em “Os incompreendidos” acendia uma vela para Balzac antes das provas de literatura, todo editor, a cada vez que põe as mãos num original, deveria fazer o mesmo em intenção a Maxwell Perkins. Se o nome não soa familiar a todos é porque ele foi um mestre da profissão: descobriu Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Thomas Wolfe. Pelo consumo industrial de álcool dos três e a genialidade que os unia, Perkins não agiu como garçom ou maestro: foi, isso sim, um diligente cirurgião, retocando “Este lado do paraíso” e “O sol também se levanta” e fazendo profundas intervenções em “Look homeward, Angel” – o caudaloso (mesmo depois dos cortes) romance que lançou a dúvida sobre o equilíbrio entre Wolfe e Perkins.
Se até aqui cito quatro americanos e um italiano não é por um acaso. A tradição de editar para valer é recente no Brasil. Há os autores cordiais, que concordam com tudo o que você fala e não alteram uma linha. Outros também aceitam e esperam que você faça as mudanças. Quase todos, aliás, querem alterar alguma coisa até o livro entrar na gráfica – e não há o que reclamar, já que foi você quem começou a brincadeira.
Esta vida invisível nem sempre é tranqüila, mas quase sempre vale a pena. Uma vez, recebi o original de um livro de estreia: li, reli e não achei nada. Duvidei de mim mesmo. Um experiente escritor, amigo comum que tenho com o autor, leu e dissipou minhas dúvidas ao perguntar: “você mexeu?” E, orgulhoso, confessei: nada.
Mas a melhor mesmo é a suspeita de que eu seria o verdadeiro autor de um livro incensado pela crítica. É volta e meia levantada por seu criador, que já teve originais recusados e é um pote até aqui de mágoa. O diabo é que até hoje eu e o autor (o verdadeiro) ficamos nos perguntando: afinal, a quem ele queria ofender?
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O EDITOR vive e trabalha no Brasil, com identidade indefinida e um vício renitente: não consegue ler nem bula sem pensar em dar uma ajeitadinha no estilo
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