sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Pílulas dos cadernos literários (#6) - 01/08/2009

Pronto. Terminado aos 45 do segundo tempo. Finalizo a reportagem que saiu sobre o poeta Rodrigo de Souza Leão, com a matéria de Luciana Hidalgo. Acho que semana que vem será mais tranquilo.

‘Escrever para não morrer’
Para alguns autores, palavra pode atuar como ferramenta útil na recuperação de um ‘eu’ partido

Por Luciana Hidalgo

Disse Balzac que o homem é um bufão a dançar sobre precipícios. A frase, transcrita por Lima Barreto em seu diário, diz muito, não apenas sobre a trajetória desse escritor carioca, internado duas vezes no hospício, mas acerca do homem e de suas certezas movediças. Nessa admirável valsa da condição humana, que junta “normais” e “loucos” separados por frágeis limites, uma questão lateja: o que une os quadros de Van Gogh, os bordados de Arthur Bispo do Rosário e os escritos de Artaud? É tentador, mas redutor explicar gênios pela sua “loucura”. No entanto, é inevitável a impressão de que, de uma forma ou de outra, a arte se beneficia, e muito, dessa dança por contornos extremos.

A fronteira entre o real e o ficcional é permeável

Se é impossível fazer o elogio da loucura, com todo o desespero que esquizofrênicos expõem ao vislumbrá-la, pode-se ao menos fazer a apologia da arte vazada do delírio, às vezes dotada de incomum qualidade estética. Talvez por criarem numa eterna situação-limite, esforçam-se por pintar ou “escrever para não morrer”, como disse o crítico Maurice Blanchot. Ou escrevem para não enlouquecer, a exemplo de Lima Barreto que, ao ser internado no Hospital Nacional dos Alienados em 1910/20, escreveu “Diário do hospício” como forma de reestruturação de si.

Mulato de origem humilde, Lima viu acrescentar-se aos clichês preconceituosos de seu tempo o de “louco”. Ele era apenas alcoólatra, no estágio mais avançado do vício: o das alucinações que, uma vez acabadas, relegavam-no à solidão do homem lúcido no manicômio. Por isso escapou da vigilância para escrever o que bem entendesse no espaço branco do papel. Era um espaço autônomo, intocado pela psiquiatria, que ele usou para construir sua literatura da urgência, num intricado diálogo entre escritor e instituição. Não só fez uma autoanálise, mas descreveu ritos e vícios manicomiais, com o forte tom de crítica que o movia.

Escritores marcados pelo trauma de situações como esta têm em comum a insistência com a temática “loucura”. Rodrigo de Souza Leão, autor de “Todos os cachorros são azuis”, que nunca escondeu sua esquizofrenia, contagiou seu primeiro romance com a própria experiência. Seu narrador alterna realidade e fantasia para contar o dia a dia no hospício, a certa altura agitado por um crime. Entre comprimidos, injeções eletrochoques, o personagem combate cupins gigantes, vê samambaias crescerem ao seu lado e convive com Rimbaud, colega de infortúnio. A fronteira entre o real e o ficcional é permeável, o que influencia essa escrita que corre bem, mas às vezes vai, volta, fragmenta-se e remete à estrutura seccionada do delírio.

Para alguns desses autores, a escrita parece atuar como ferramenta útil na recuperação de um “eu” partido, ou do pensamento cindido, para usar expressão próxima à etimologia da esquizofrenia (do grego, “alma fendida”). É o caso do dramaturgo francês Antonin Artaud, que dispôs da escrita como artifício de resistência durante nove anos de internação na França dos anos 1930/40. Esquizofrênico, alternando fases lúcidas e outras marcadas por um contato quase nulo com a realidade, escreveu diários sacolejados por esses altos e baixos.

A arte como uma sutil busca pelo todo

Uma pergunta de Artaud dá a dimensão da angústia: “Até quando devo refugiar-me no não-ser para ter o direito de ser o que sou?” A escrita tinha a função de compensar este corpo desgovernado, sitiado pela autoridade numa época marcada por tratamentos violentos, pré-movimento antimanicomial.

Talvez pelo caráter fragmentário da esquizofrenia essa arte seja tão autorreferente e flagre uma sutil busca pelo todo. É o caso de Arthur Bispo do Rosário, interno da Colônia Juliano Moreira que criou mais de mil obras consagradas no mercado de arte contemporânea. Ele dizia cumprir uma missão, a representação de tudo o que havia na Terra, feita para Deus, sob ordens de anjos. Bordou nomes de pessoas queridas, delírios, extratos poéticos, autoficções.

Na retidão da cela, Bispo desfiou o uniforme azul do manicômio para reaproveitar os fios que cerziriam seus bordados. Ao fazer estandartes, usou as mantas da Colônia como suporte; para as assemblages, apropriou-se das canecas de alumínio do refeitório. Signos manicomiais ganharam novo sentido e valor estético nessa ousada desconstrução do poder no hospício.

Podem-se citar outras preciosidades da literatura brasileira que tocam no tema “loucura”, a exemplo de “Armadilha para Lamartine”, de Carlos Sussekind, “Quatro-Olhos”, de Renato Pompeu, e “Hospício é Deus”, de Maura Lopes Cançado. Artistas de alta linhagem, provavelmente comungariam da frase bordada por Bispo numa obra: “Eu preciso dessas palavras – escrita.” A palavra alcança status extraordinário, a arte traduz universos inacessíveis.

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LUCIANA HIDALGO é jornalista e autora de “Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto” (Rocco) e “Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura” (Annablume)

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