Fonte: Caderno Prosa & Verso - O Globo (15/08/2009)
- Entrevista com Milton Hatoum sobre Euclides da Cunha
O GLOBO: Em seu ensaio "Expatriados na própria pátria" você faz um estudo comparativo sobre Euclides da Cunha e Joseph Conrad. Poderia falar sobre isso?
MILTON HATOUM: Isso seria a minha tese de doutorado, mas acabei abandonando o curso para escrever "Dois irmãos". Conrad e Euclides foram contemporâneos. Ambos tinham essa ânsia da descoberta, da viagem, do desconhecido, da viagem, do desconhecido. O Conrad por sua própria profissão: ele era marinheiro, chegou a ser capitão da marinha mercante inglesa. O Euclides era um patriota, no bom sentido. Um homem que queria descobrir o deserto, as regiões mais distantes e inóspitas do Brasil. Os dois são filhos de uma mesma época, de uma época que privilegiava a ciência, o progresso, o positivismo, as descobertas científicas, o evolucionismo. E ambos eram pessimistas, embora o Conrad fosse mais desconfiado que Euclides, mais sombrio.
* O contato com a Amazônia tem sobre Euclides um efeito comparável ao da viagem a Canudos?
Hatoum: Muito do que Euclides escreveu n'"Os Sertões" vem de uma cultura livresca. Ele passou pouco tempo na Bahia, menos de um mês no cenário da batalha. No caso da Amazônia, foi muito diferente. Ele passou mais de um ano lá. Essa vivência foi muito importante. Nos ensaios amazônicos há muito menos do determinismo climático e das teorias raciais que são dois anacronismos quase aberrantes n'"Os Sertões". Isso foi muito mitigado nos ensaios amazônicos, embora ao falar dos nativos ele seja altamente preconceituoso, e acabe por isso sendo ingênuo, atribuindo problemas da região à preguiça, à lascívia, ao furto. Ele cai nessa armadilha.
* Como ele vê a Amazônia?
Hatoum: Ele percebeu que o regime de trabalho nos seringais era de escravidão, semi-escravidão. Daí aquela frase famosa dele: "o seringueiro é um homem que trabalha para escravizar-se, é um expatriado na própria pátria". Curiosamente, ele exclui das análises dele o caboclo amazônico e os índios. Para ele, o que interessa na colonização da Amazônia é o mesmo sertanejo de Canudos. O imigrante que, desde as secas de 1860, vai para a Amazônia, saído do sertão do Ceará, da Paraíba, e que povoa a Amazônia. Aí tem esse trato patriótico do povoamento, dos serigueiros que se fixam à terra, ao contrário do caucheiro peruano, que é nômade e predador, pois derruba a árvore. Quem vai realizar a posse da terra é esse seringueiro nordestino, viabilizando a civilização que Euclides vislumbra no futuro. Ele é o protagonist dessa civilização com que ele está sonhando.
* Ele se preocupa com a preservação da natureza?
Hatoum: Ele é muito contraditório quando fala da natureza amazônica. É um movimento pendular. Ora ele é deslumbrado pela natureza, que ele chama de maravilhosa, portentosa, ora ela é uma natureza degradante, destruidora, uma espécie de inferno. Aí ele não sabe para onde vai. Mas critica a depredação da floresta.
* Saindo do plano apenas ideológico, quais os méritos literários dos textos dele sobre a Amazônia?
Hatoum: Em "À margem da História" há um texto admirável, que é o "Judas-Asvero". É um texto tão bom quanto a parte final de "Os Sertões". Dele estão excluídas essas teorias raciais, climáticas. É um relato sobre a construção dessa escultura de pano que representa Judas, no sábado de Aleluia, e que serve como desforra dos seringueiros contra Deus e o mundo, uma desforra se passando ali no fim do mundo. É uma espécie de quadro dissonante da obra do Euclides. Tanto que ele não quis publicar esse texto. Achava muito pitoresco. Foi Coelho Neto que disse para ele, "isso é uma das melhores coisas que você já escreveu". Aí não é o Euclides sociólogo, geógrafo, estatístico, historiador. É o Euclides que poderia ter sido um ficcionista.
* Lendo Euclides você aprendeu algo sobre a Amazônia, ou teve com ele apenas lições literárias?
Hatoum: Os escritores inventam mitos de leituras precoces. Há uns que leram Proust aos nove anos de idade e coisas assim. Eu não fui esse leitor precoce. Mas fui uma vez, por obrigação. Aos 14 anos, eu tive que ler trechos d'"Os Sertões", como punição disciplinar na minha escola em Manaus. Eu fiquei maravilhado. Euclides é um gênio verbal. Ali também percebi que meu mundo não era só o Amazonas. Que havia um outro Brasil. Depois, quando eu li os ensaios amazônicos, percebi com clareza como funcionava o regime de trabalho dos seringais. Isso foi também uma revelação.
* Que legado esse impulso de desbravamento de Euclides da Cunha deixa para os intelectuais e autores brasileiros? Esse gesto de exploração ainda é importante?
Hatoum: Hoje, infelizmente, muito menos. Hoje muita gente quer esculhambar o Brasil. Está na moda essa atitude cínica, e o Brasil é muito mais complexo do que isso. Mas o Mário de Andrade foi um euclidiano. Saiu para conhecer o Brasil todo. O Mário leu os ensaios amazônicos. O Guimarães Rosa também. "Nonada", por exemplo, é uma palavra usada por Euclides em "À margem da História". Então também nesse sentido ele deixou sim um legado importante. Nossa mente é muito colonizada, e o Euclides era revoltado com isso.
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