Abaixo continuação da matéria que saiu no último domingo (dia 16/08/2009).
Ressalto uma frase do Daniel Galera que acho diz tudo sobre a utilidade de uma oficina literária na vida de um escritor: "eu sabia sem saber".
É isso. Todo aspirante a escritor sabe que é preciso ler muito, sabe que é preciso trabalhar duro sobre o texto, carpintaria para transformar carvão em diamante. Mas, na grande maioria das vezes, o escritor sabe disso sem saber. Ele faz, ele sabe fazer, mas tateia no escuro. Até que alguém lhe oferece a luz.
Muito antes de fazer minha primeira oficina, eu já havia sido premiada em três concursos literários. Mas tateava no escuro. Não entendia porque alguns textos "funcionavam", outros não. Quando entrei numa oficina, passei a enxergar onde estava problema. Hoje meus textos mantém um mesmo padrão, melhor do que eu escrevia nos primeiros anos. Cada vez estou mais exigente, busco o ótimo a partir do bom, mas acho que todo escritor faz isso a vida toda. O próprio Lobo Antunes falou sobre isso na Flip.
Em Informática temos um modelo que se chama CMM (Capability Maturity Model). Numa definição para leigos (de informática) significa um modelo que propõe capacitar uma empresa a ser madura, ou seja, a ser capaz de reproduzir o sucesso obtido com alguns projetos. Às vezes algumas equipes de desenvolvimento conseguem entregar um produto com qualidade, porque a equipe é boa. Mas se uma peça dessa engrenagem for trocada, talvez não consigam repetir esse feito. O modelo CMM busca organizar as tarefas, criar métricas, determinar o que é preciso para que o bom resultado seja fruto de boas práticas. Mas a empresa precisa provar que sabe usar essas boas práticas para receber uma certificação CMM.
É isso o que acontece numa oficina. Ensina-se as boas práticas, mas o escritor precisa provar que é capaz de fazer uso delas, para receber o nome "escritor"... tendo ou não um livro publicado. ;)
RELATO DE UM ESCRITOR APRENDIZ
Daniel Galera descreve sua participação no curso de técnicas de leitura e escrita que, de forma 'surpreendente e inevitável', fez dele um autor
Por Daniel Galera
especial para a Folha
Surpreendente, mas inevitável. Quando, em algum momento de 1999, o professor Assis Brasil [que coordena oficinas de texto na PUC-RS] colocou nesses termos para seus alunos o desfecho ideal de todo o conto, eu sabia exatamente do que ele estava falando. Sabia porque, aos 20 anos, já tinha lido centenas de contos. Mas eu sabia sem saber.
Tinha a experiência, mas não a consciência da experiência. Sabe lá quanto tempo eu levaria para chegar sozinho a uma fórmula tão elegante para definir o instante em que o subtexto, tão essencial ao conto moderno, vem à tona. Talvez nunca chegasse. Foi esse tipo de coisa que a oficina de literatura do Assis me deu de bandeja.
Quando entrei na oficina, eu já escrevia contos e os divulgava na internet, mas me considerava um diletante. Era um sujeito que só começava a suspeitar que a literatura talvez não fosse um interesse passageiro como outrora foram o violão, as histórias em quadrinhos, o web design.
Eu cursava publicidade e propaganda sem convicção nenhuma, e o futuro me parecia um shopping center onde teria de passar a tarde a contragosto num domingo de chuva. Mas eu lia muito desde piá, e aquela coisa de escrever ficção estava ficando séria. Por isso me inscrevi na oficina.
Recuemos um pouco. Um dos contos que mais marcou minha, cof, juventude, foi "O Beijo", de Anon Tchekhov. O enredo é simples. Um batalhão de soldados russos acampa num vilarejo e é convidado por um aristocrata local, o general Von Rabbek, para um chá festivo. Um militar particularmente tímido e apagado, de nome Riabovitch, perde-se nos corredores escuros da mansão e é beijado por uma mulher desconhecida que estava à espera de um outro qualquer.
O incidente afeta o ingênuo protagonista de maneira duradoura. Ele passa as semanas seguientes em deslumbramento, fantasiando sobre a identidade e a aparência da mulher. O sentimento de alegria persiste. Marchando à noite, ele tem a impressão de que a luz distante de uma janela ou fogueira está piscando secretamente para ele, como se soubesse do beijo.
Tempos depois, o batalhão acampa de novo no vilarejo. Riabovitch torce para que o general os convide para outro chá, na esperança de rever a mulher. Mas a essa altura ele já começa a reconhecer a insignificância do episódio do beijo, constatando o abismo entre o fervor da sua imaginação e a indiferença do mundo ao redor. E então o mensageiro do general de fato vem e novo convite é feito ao batalhão. Riabovitch, amargurado, decide não ir e se mete na cama.
Esse conto sempre me casou profunda impressão, e fiquei muito tempo sem entender o motivo. Há elementos óbvios com os quais todo ser humano se identificaria. "Todo esse sonho que agora me parece tão impossível e excepcional é na verdade bastante ordinário", conclui Riabovitch ao escutar as conversas vulgares de seus companheiros sobre encontros com mulheres.
Subtextos
Quem não passou longos períodos entregue a fantasias, amorosas ou não, apenas para "cair na realidade" de uma hora para outra? Quem não conhece a frustração ou a melancolia que disso resulta? Mas o conto é muito mais do que isso. Do que, então, ele realmente trata?
Numa das várias aulas em que abordou o subtexto literário, Assis Brasil nos deu como exemplo uma famosa anotação para um conto encontrada num caderno de Tchekhov: "Um homem vai ao cassino de Monte Carlo e ganha uma fortuna na roleta. Volta para o hotel e se suicida". Essa é a história aparente do conto, e supõe-se que o elemento crucial, o motivo de o homem matar-se nessa estranha circunstância, seria infiltrado no enredo como história oculta, ou subtexto.
Cabe ao leitor captar o subtexto. Cabe ao escritor dar-lhe pistas na dose exata para que a descoberta exija esforço e seja recompensadora na mesma medida. O suicídio deve ser surpreendente. Mas também deve ser inevitável. Como a atitude de Riabovitch no final de "O Beijo".
Por trás de todo conto há uma parábola, ou seja, a projeção de uma história em outra história. O conto aponta para outra narrativa que o extrapola, e que se encontra em grande parte na experiência de vida do leitor. Construir essa ponte faz parte da nossa natureza.
Narramos sem parar, seja na comunicação com os outros ou no domínio da introspecção. É o que fazemos ao procurar o "sentido" de "O Beijo", e é o que faz Riabovitch ao combinar detalhes de todas as moças presentes na mansão para criar sua musa particular e transformar o beijo acidental numa elaborada fantasia.
Eis o "nocaute" do conto: o autor cria condições para que uma potente parábola seja escrita com a participação do leitor, mas entrega a chave só no final. O desfecho é o começo.
Depois das conversas sobre subtexto na oficina, reli "O Beijo" e finalmente percebi como esse mecanismo entrava em ação. Por mais tocante e lindamente narrada que seja toda a história aparente de Riabovitch, e por mais que em seu desfecho ele sufoque a alegria momentânea, abdique da possibilidade de rever a mulher e se meta na cama, resignado, sentindo raiva de seu destino, a verdade é que ele toma a decisão correta. E o faz porque seu exaustivo exercício de fantasia o transformou numa pessoa melhor.
Tchekhov tenta esconder isso ao máximo, e chega a apelar, numa das últimas frases, quando põe seu personagem a observar a água do rio que passa pelo vilarejo: "Em maio ela tinha corrido para o grande rio, e do grande rio para o mar; então subiu em forma de vapor, virou chuva, e talvez a mesma água estivesse correndo agora de novo diante dos olhos de Riabovitch... Para quê? Por quê?".
Releitura
E eu respondo, projetando a história que Tchekhov me deu numa outra que ele me convida a criar, com base no pouco que já sei do mundo: para que Riabovitch perceba que nesse retorno a água pode ser a mesma, mas ele próprio não. Ele mudou para sempre.
Para que vá se deitar um pouco mais próximo de si mesmo, sem gastar suas energias inultimente na tentativa de ser sociável e mulherengo como seus companheiros de batalhão, pois ele sabe faz tempo que é diferente de todos eles e já concluiu que um dia, cedo ou tarde, uma mulher passará por sua vida. Para que seja capaz de abrir mão. Podemos nos surpreender com sua decisão, mas ela é inevitável.
Não creio que uma oficina literária possa forjar um talento. Mas esse é um exemplo de como ela pode, sim, aprofundar e instrumentalizar a relação de um possível autor com as narrativas que lê e escreve.
Uma lição da oficina me levou a uma releitura definitiva (para mim, é claro) de um dos contos que haviam marcado minha adolescência. Encontrei palavras e conceitos adequados para explicar aspectos da ficção que minha experiência como leitor me levava a intuir, e isso foi um ponto de partida para pensar a literatura com um pouco mais de ambição.
Nunca escrevi tanto quanto naquele ano. A oficina nos exigia em média um conto por semana. Narrar uma saga familiar de cinco séculos em cinco linhas. Narrar um episódio de dez segundos em dez páginas. Contar uma história apenas com descrições do cenário. Os textos eram analisados pelo professor e exaustivamente debatidos pelos alunos, que acumulavam cada vez mais ferramentas para a tarefa. Clichês, técnicas de diálogo, modalidades de narradores.
Ao longo de 1999, eu decidi que escrever seria minha prioridade. Passei 20 anos me distraindo disso, mas de repente, como no final de um bom conto, o subtexto veio à tona. Até então, sinceramente, eu não planejava nada disso. Surpreendente, mas inevitável.
DANIEL GALERA, escritor e tradutor, é autor de "Cordilheira" (Cia. das Letras)
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