sábado, 15 de agosto de 2009

O que tenho lido... mais sementes #1

Continuando as sementes do que li nos últimos tempos, trago hoje trechos do livro Mundos de Eufrásia, de Claudia Lage.

Para saber um pouco mais sobre o livro, incluindo o texto de orelha, acesse a divulgação no Sobrecapa.

Estou empolgadíssima com o romance, com o texto da Claudia. Então para atiçar a vontade de vocês, algumas sementes da melhor qualidade...

"Mais do que tudo, começou a contar os momentos felizes e os tristes. Não havia falado nada a seu pai, mas achava que se soubesse somar alegria com alegria, nunca sentiria tristeza. E se soubesse diminuir a tristeza da tristeza, a anularia na própria origem, já que um menos um é igual a zero. E zero é um recipiente vazio que, achava, poderia preencher com o que quisesse na vida. Era o que pensava, menina. Era o que tentou pensar sempre, no esforço de acreditar que o desejo nascia para morrer de luz e depois renascer de si mesmo, na plenitude daquilo que se quer e que se tem. E não que o desejo nascia para morrer numa extinção lenta de sonho e esperança, afagos e apelos, anseios que se debatiam e ofegavam, que se somavam e diminuíam sem nunca ganhar ou perder. Apenas se multiplicavam incessantemente pelos anos, ou se dividiam parcimoniosamente pelos dias, num arrastar de sobrevivência de quem aplaca as próprias forças para não se sobrecarregar de si mesmo, não se consumir na brasa da própria luz que alimenta, não implodir na urgência da própria explosão."

"Ficaram os dois mudos. Surpreso por encontrar tranquilidade onde esperava tremor, Nabuco padecia. Eufrásia olhou surpresa o seu padecimento, descobrindo que estava ali um homem titubeante, desarmado dos artifícios incendiados com outras mulheres. Observou o castanho dos cabelos cacheados, admirada mais uma vez de serem exatamente da mesma cor dos olhos. Nabuco tinha os olhos doces, que desmentiam a postura arrogante. Ou era a arrogância que desmentia a doçura. Nossa Senhora da Conceição, acostumada que estava com mocinhas ajoelhadas diante de sua imagem a suspirar por rapazes que mal conheciam, enxergando em todos os futuro marido, se admirava do olhar sem desvios daquela moça, que olhava o moço, e não o futuro marido no moço, o moço, e não o sonho de filhos, o moço, como se intuísse que estava nele o início, o fim e o meio de todo o desejo, como se já tivesse percebido que as mulheres conheciam do amor muito pouco, apenas o que os homens permitiam conhecer. E a permissão se resumia a sonhar acordada ou dormindo com cavalheiros inacessíveis, desmaiar quando a fantasia tomava a carne em vontades impróprias e chorar quando a realidade feria demais os sonhos."

"No entanto, Ana Esméria não emendou discussão nenhuma. Pelo contrário, preferiu se fazer de surda e iniciar outra conversa. "Tenho reparado, Eufrasinha, que estás diferente." Eufrásia, que vinha justamente se esforçando muito para parecer a mesma, enrubesceu. Já estava enrubescida desde cedo, quando recebera o bilhete de Nabuco, convidando-a para o encontro na Igreja Matriz, mas a percepção da mãe a pintara mais de vermelho. Ana Esméria se deliciou com a reação da filha. Interpretou como a confirmação de suas suspeitas. "Acho que estás apaixonada." Eufrásia explodiu numa risada nervosa. "Que tolice, mamãe!", "Por que tolice? Não estás?", "Não", respondeu, em um tom que não convenceu nem a si própria. "Não estou!", repetiu, deixando claro que estava, "Por que estaria?", insistiu, confirmando que não podia deixar de estar. "E por que essa ideia agora?", tentou escapar, como pôde. "A senhora não queria que eu lesse a receita?"

"Eufrásia sentou a mãe numa cadeira. O dia lá fora brilhava, a casa por dentro ardia. Abriu as janelas, pediu que a mãe respirasse fundo, respirou, respiraram. Puxou o fio do assunto, "Por que afinal achas tanto que morro de paixão por Leopoldo?". O fio esticou até Ana Esméria sentada e ofegante. "Não acho nada, filha" Ana Esméria desolada. "Quero achar." Extinguindo-se. "Preciso." O fio voltou à Eufrásia, enrolou-se nela, "Por quê?", apertou-a na garganta, "Papai tem alguma razão em não querer que nos casemos com primos, como toda a família", apertou-a para que não falasse mais nem menos do que devia. "Se essa tradição continuar, corre-se o risco de algum dia, por engano, alguém se casar com o próprio irmão." Ana Esméria engasgou, "Deus me livre!", fez o sinal da cruz. Era o fio que esticava até seu pescoço, que ia de uma para a outra, da outra para uma. "Já esqueceste o que aconteceu com Francisca, minha mãe?", Ana Esméria teve um susto, "Não, não esqueci!". O fio esticava. "A pobre!" Esticava, esticava. "Mas o que tu tens com isso?" Eufrásia não entendeu. O fio teso. Não podia perceber que a mãe, nas vésperas de deixar esse mundo, enxergava além da vida e da morte. "Francisca foi infeliz no amor, coitada", lamentou. O fio no limite. "Mas tu não precisas ser." Todo o seu rosto se iluminou, como nas profecias, "Basta uma infelicidade na família, meu Deus!"

Aquele fio ficaria esticado para sempre. Prestes a romper e nunca se romperia. (...)".

"Eufrasinha nunca havia visto uma criança com olhar de velho. Parecia que tinha um avô dentro daquele menino. Um avô que a olhava, com o pensamento carregado de anos. Joaquim Nabuco, ou Quinquim, estava com o corpo escondido atrás da enorme figura do pai. Um garoto sério que espiava pela fresta da porta, que a olhava com uma idade que não tinha."

"Eufrásia sofria com a imagem da mãe lhe estendendo o caderninho, não esqueça a erva-doce, filha. E se via escrevendo o nome do tempero, num tempo guardado em seu peito, lá atrás. Não sabia dizer se era um tempo mais feliz ou mais triste. Era um tempo em que sua mãe existia, só isso."

Tenho tantas outras passagens que desejei compartilhar com vocês, mas não quis estragar a surpresa da própria história que elas trazem.




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