sexta-feira, 15 de maio de 2009

Outro sucesso de Bernhard Schlink

Já falei aqui da impressão maravilhosa que tive com o filme O Leitor. Já ouvi de vários amigos que o livro é muito melhor. Pois bem, há pouco, saiu publicada a tradução de mais um livro de Bernhard Schlink, chamado O outro.

E claro que vem como promessa de bestseller. E uma pulguinha me perguntou se teríamos aí outro sucesso, que agradasse ao público e à crítica.

E dias depois dessa pulguinha começar a me perturbar, eu nem tendo colocado o título na minha lista do "a comprar", me deparo com o artigo de José Castello, em sua coluna semanal do caderno Prosa & Verso.

Impressão depois dessa leitura: o livro já foi incluído na minha lista interminável, que arrebenta com a conta do cartão de crédito. Ele e seu irmão famoso: O leitor. Duplo gasto.

Como o artigo não fica online, espero que ninguém reclame de eu o reproduzir aqui. E com isso, deixo que vocês tirem suas próprias conclusões.

A mentira da verdade
Por José Castello
(Caderno Prosa & Verso - edição 09/05/2009)

A literatura é um rasgão na placidez do mundo. Olhar enviesado, que nos pega pelas costas e de mau jeito, ela se impõe como um golpe e nos agita. Pode a literatura dar conta do mundo? Lendo Manuel Bandeira, deparo com uma de suas traduções do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez, que me ajuda a pensar: "Colhi-te? Não sei/ Se te colhi, pluma suavíssima/ Ou se colhi tua sombra". Nunca chegamos ao que queremos. O mundo se assemelha a esses espelhos sinuosos que, nas feiras e nos circos, nos oferecem sucessivas imagens deformadas. Você se mira naquelas sombras, na esperança, tola, de uma convicção. À saída, já não sabe mais quem é.

Ideias sobre os limites fluidos do ser me vêm enquanto leio "O outro", novela do alemão Bernhard Schlink (Record, tradução de Kristina Michahelles). Um livro simples que -- com a delicadeza cruel dos anestesistas, que nos embalam em sono profundo só para que nos retalhem -- arranca a cortina de ilusões em que nos protegemos. Schlink (que é também o autor de "O leitor", livro que Stephen Daldry transformou em um filme premiado) nos pega de jeito. Acredita-se, em geral, que ele seja só um inofensivo autor de bestsellers. Você se deixa levar por seus relatos, neles se aconchega, como se abraçasse um animalzinho de estimação. Ao final, porém, o livro fica cravado em seu peito, como uma adaga.

"O outro" é a história de Bengt, um músico que, depois de perder a mulher, Lisa, vitimada por um câncer, faz uma descoberta cruel: durante longos anos, sem que ele jamais suspeitasse, a esposa o traiu. A carta de Rolf, o Outro, lhe chega em meio aos cartões de condolências. Destina-se não a ele, o viúvo, mas a Lisa, a morta. Julgando-a viva, Rolf lhe escreve para falar do "pecado da vida não vivida, do amor não amado". Implora que volte a seus braços.

Bengt lê a carta do Outro com desespero. O ciúme o fere. Mais dolorosa, porém, é a ideia de que, provavelmente, não conhecia a mulher que amou. "Como saber se ela fora uma para ele e outra para o Outro?" -- ele se pergunta. Não se interessa por Rolf, mas pelo lugar que o Outro ocupou na vida de sua mulher. Lugar não só de um terceiro, mas a partir do qual uma nova imagem de Lisa -- agora vista como uma estranha, ela também Outra -- se descortina. Ao lado do Outro, Lisa era, por certo, a mesma mulher que ele sempre amou e a quem, com tanto carinho, ajudou a morrer. Mas era, ao mesmo tempo, uma Outra, uma desconhecida. A imagem da amada se divide. O que é pior: Lisa ter sido Outra ao lado do Outro, ou ter sido a mesma? Quem, afinal, foi Lisa: a mulher que o amou, ou a mulher que o traiu?

Bengt controla a raiva e, friamente, escreve ao Outro comunicando a morte da esposa. Quer dar a questão por encerrada. São apenas três frases secas: "Sua carta chegou. Mas já não chegou para quem você a escreveu. A Lisa que você conheceu e amou morreu." Em vez de tomá-la como um comunicado fúnebre, porém, o Outro a lê como um pedido de ruptura, que a amada assina. Como são pérfidas as palavras! A carta -- a mesma carta --, dependendo de quem a lê, se torna outra carta. As três linhas escritas por Bengt imitam a consistência fluida da literatura, massa pegajosa que, na mente de cada leitor, toma uma forma. Volto à sentença genial de Roa Bastos: "Um livro só existe na cabeça do leitor". Para cada um de nós, um mesmo livro é, sempre, outro livro.

Um desesperado Bengt responde a carta em nome de sua mulher -- "ressuscistando-a". Ao ocupar o papel da morta, ele experimenta o prazer perverso de transformar Rolf em seu fantoche. Passa a lidar, assim, com um segundo Rolf: não mais o homem que Lisa amou, mas o tolo que ele, por vingança, manipula. Faz assim, do Outro, um terceiro. A partir daí, Bengt se entrega a um jogo sofisticado, no qual as regras variam de acordo com quem mexe as peças. Não é outra coisa a literatura, senão um mundo arbitrário que, nas mãos de cada escritor, se transforma em algo distinto. A literatura é uma valise dentro da qual o escritor, iludido a respeito de seu poder, arruma as palavras. Mas só o leitor -- cada leitor -- lhes confere sentido.

A partir daí, Bengt passa a viver para o Outro que, no entanto, já não é o Mesmo que Lisa conheceu. Que desassossego! O mundo sacoleja: as posições se desfiguram, os horizontes quebram. Com as cartas escritas em nome de Lisa, um temerário Bengt não só se intromete no amor secreto entre ela e o Outro, como inventa uma maneira (suicida, pois faz dele uma carta fora do baralho) de ressuscitar a mulher. O jogo se desenrola até o momento-limite em que Bengt, não suportando mais o solo quebradiço em que avança, decide procurar o Outro, Rolf em pessoa, para encará-lo. Acredita que, defrontando a verdade, pisará, enfim, em terra firme.

A verdade, porém, é deplorável: Rolf não passa de um pobre fanfarrão, um miserável janota. A verdade é uma mentira. O que Lisa via, afinal, naquele imbecil? Bengt abandona, então, a busca da verdade e a substitui -- para usar uma expressão do artista russo Wassily Kandinsky -- pela invenção de uma "olhada interior". Abdica da nitidez e da perfeição e retorna a si. Também o Outro se duplica: Rolf era um homem para Lisa, passa a ser outro para Bengt, que só assim pode fazer a travessia de seu luto. Ao leitor cabe, agora, elaborar uma perda: a de suas ilusões a respeito do que lê. Não temos mais o direito de acreditar nesses personagens límpidos e coerentes que habitam as narrativas da tradição. Se eles ainda surgem em muitos relatos contemporâneos, já não passam de farsas.

Cabe, então, ao leitor se perguntar quem era aquele Outro que, em seu lugar, com sinceridade e boa fé, lia com tanta candura. A crença cega, os dogmas, as certezas já não lhe servem mais. A novela o leva a uma difícil descoberta: a de que as grandes narrativas são aquelas que nos libertam. Nem a beleza dá acesso à verdade, que é sempre inacessível. "A beleza não é meta suficiente para a arte", dizia Kandinsky. Vêm-me, agora sim, os versos de Manuel Bandeira: "Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".

2 comentários:

carmen disse...

Acabei de ler O Outro, postei no meu blog e adicionei também tua cronica de José Castello sobre o livro. Corresponde ao que sentí ao ler e a minha emoção.
Vou adicionar um texto que admirei.
Beijo
Parabéns pelo blog!
Me visite.

Ana Cristina Melo disse...

Obrigada, Carmen.
Vou visitá-la, sim.