O conto “O banco de Drummond” ficou em 1º Lugar no 2º Concurso de Literatura da Cidade de Gravatal.
Este é um conto antigo, um dos primeiros que escrevi. Lapidando daqui, cortando dali, o resultado ainda não me satisfez. Fiquei na dúvida se o publicava aqui, mas acho que preciso me desligar dele, para conseguir encontrar sua forma perfeita.
Espero que gostem!
O banco de Drummond
Ana Cristina Melo
As ondas se formavam longe e chegavam à praia num convite ao mergulho. Sobre um banco no calçadão, a estátua de metal em tamanho natural, de Carlos Drummond de Andrade, espelho do que o poeta fazia ao entardecer, meditando ou simplesmente apreciando o mar. Ao seu lado, Cirilo, remoendo lembranças e digerindo incertezas.
“Pena que você está de costas, o mar está tão bonito hoje, amigo! Parece que nem presenciou aquela agressão de ontem”.
“Que idéia daquela idosa reagir àquele pivete? Não perdeu a bolsa, mas ganhou alguns hematomas. Aquele menino não teve mãe... ou teve apenas quem o parisse e o jogasse nesse mundo”.
Cirilo continuava seu monólogo, aguardando o discursar de seu companheiro.
Sentava-se naquele banco, no calçadão, em frente ao mar de Copacabana, há uns oito anos. Já fazia parte da paisagem do lugar, assim como Drummond. A quem perguntasse, Cirilo respondia que vinha diariamente, de 7h às 10h, para visitar o amigo. Apiedou-se dele desde o dia que o deixaram ali à própria sorte. Houve até festa, veio o Prefeito. Depois disso, ninguém mais apareceu; só Cirilo que vinha sempre.
Tinham longas prosas. Falavam de política, das lindas mulheres se bronzeando, dos atletas de calçadão, de livros, principalmente de livros. Certa vez, Cirilo recitou ao amigo o excerto de um poema.
– Parece você, saído de ti. Ouça: “Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”.
Foi numa manhã de dezembro que Cirilo viu seu amigo proseando com um menino de uns sete anos. Era segunda-feira, mas havia no garoto o viço de fim de semana, quando todas as alegrias nos são permitidas.
– Oi! – disse Cirilo.
– Oi! – o menino respondeu com pouco interesse.
– Bonito dia, hein!
– É. Se eu tivesse uma bicicleta, adoraria andar nesse calçadão.
– Não tem? – o menino negou com a cabeça.
– Por que não pede?
– Deixei de pedir quando entendi que minha mãe não teria condições para me dar.
– Ah!... Meu amigo não quer papo, hoje, não é?
– Que amigo? – o menino o olhou incrédulo.
– Ora, ele! – apontou para a estátua como se de gente se tratasse.
Pensou em responder que a estátua não falava. Perspicaz, se calou. O moço devia ser maluco, vivendo com um amigo imaginário.
Mudaram de assunto. Pouco depois, o menino se foi. No dia seguinte, Cirilo o encontrou no mesmo lugar. Ficou com ciúme do amigo que o traía.
– Você de novo? – Cirilo não estava muito cordial.
– Sim.
– Por que está aqui?
– Para me despedir.
– Do quê? – Cirilo ficou intrigado.
– Da cidade. Minha mãe veio para cá ainda menina, sozinha. É nordestina. Ela conta que tinha quinze anos quando chegou. Foi um conhecido de meu avô que trouxe, para trabalhar na casa dele. Mas logo a patroa a dispensou e ela se viu sozinha, sobrevivendo de faxina e morando num quartinho sem janela. – o menino relatava a vida da mãe, enquanto acompanhava o movimento do mar, como se achasse ali as palavras – Ela sempre me conta que a primeira alegria que teve foi ver o mar. Nunca teve coragem de entrar. Eu já cheguei bem perto. Tentei entrar, mas uma onda me pegou. Acabei ralando o joelho. Fiquei assustado e nunca mais voltei.
Cirilo ouvia o menino tagarelar sua vida, mudo, mas atento.
– Num dia de folga, conheceu meu pai. Disse que ele falava bonito. Apaixonou-se, e quando minha mãe ficou grávida, ele desapareceu... Luta muito para me criar. Eu me viro sozinho durante o dia, mas às vezes nos falta comida. Ultimamente, temos sorte, conseguimos quentinhas na Igreja. Minha mãe aproveitou para juntar dinheiro e comprar duas passagens. Diz que se é pra passar necessidade, que seja na terra dela. Vamos embora na sexta-feira... Sabe, moço, estive olhando as ondas que vêm e vão e me fiz uma promessa: um dia eu volto.
Uma pequena lágrima lhe escorreu na face. Mas logo tratou de enxugá-la. E meio que saindo do transe, espevitado, perguntou à Cirilo:
– E você, o que faz aqui todo dia?
– Faço companhia ao meu amigo. A solidão traz um gosto de vazio. Fiquei sozinho por muito tempo. Lembro que conheci uma moça. Bonita, faceira, tinha fogo nos olhos, jeito de guerreira. Eu trabalhava numa biblioteca. Ela era doméstica e eu a perdi. Não lembro por quê. Um dia me acidentei, acordei no hospital depois de semanas. Acho que estive em coma, foi o que disseram. Eu não tinha ninguém. Só me lembrava vagamente de onde morava e trabalhava. Lembranças completas, mesmo, só as bem antigas. Ah, que pena serem tão imprecisas as recordações de minha morena! Quando saí do hospital, fui demitido. Aí vim para cá e encontrei meu amigo. Fiquei com pena dele.
Cirilo sussurrou no ouvido do menino:
– Ele é caladão assim, mas sempre foi muito inteligente. Na minha opinião é um poeta... E você, sabe empinar pipa?
– Sei, mas não tenho nenhuma. – Não havia vestígio do ar sofrido, era apenas um menino.
– Amanhã vou trazer uma para empinarmos juntos.
No dia seguinte, Cirilo chegou com a pipa mais linda que o pequeno havia visto. Brincaram juntos toda a manhã. Mais um dia e Cirilo lhe trouxe uma bola, e brincaram na areia. Na sexta-feira, Cirilo lhe deu um livro de Monteiro Lobato. Disse a ele que guardasse muito bem os seus presentes. Era tudo do que precisaria para ser feliz: de alegria e sonhos.
O menino se foi. Viajou com a mãe, levando consigo seus tesouros. Nunca esqueceria Cirilo. Um dia haveria de contar dele para a mãe. Cirilo talvez esquecesse o menino. Tinha muito com o que se preocupar.
Calado e pensativo, Drummond era o único que sabia do segredo que nenhum dos dois fora capaz de descobrir.
2 comentários:
Ana,sensibilidade, poesia, realidade dura e o óbvio, tão próximo que se torna distorcido à visão,são a tônica desse conto. Parabéns. Você já pode dizer em sua biografia: Ana, carioca, escritora.
Parabéns pelo blog: útil, necessário e, principalmente, literatura pura.
Dag Bandeira
Obrigada, Dag.
Foi bom encontrar seu comentário, pois me fez reler o texto e encontrar pequenos deslizes. Só o tempo de gaveta, mesmo! E nesse caso, gaveta virtual. rsrs
Tirei umas repetições, troquei palavras que não estavam literárias. Acho que agora melhorou bastante, mas provavelmente ainda falta uma última lapidada. Preciso descansar meu olhar crítico novamente, por uns dois meses. rsrs
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