Acabou há pouco mais de uma hora a conferência "A poesia envenenada de Dom Casmurro", de Roberto Schwarz, em homenagem à Machado de Assis. Não estive na tenda, mas curti o prazer de acompanhar, entre uma ou outra perda de conexão, via transmissão ao vivo pela Internet (http://flip.oi.com.br).
Apresentado por Hélio Guimarães, Schwarz começa sua palestra afirmando que os capítulos de abertura dos romances de Machado de Assis são obras-primas.
Leu o primeiro capítulo de Dom Casmurro, que explica a origem do título. Após leitura, ele analisa e conclui que esse título é o resultado de um processo em várias etapas, trazendo uma visão conciliadora.
Nesse processo, está o poeta do trem que incomodou o cavalheiro reservado - Dom Casmurro. No final do capítulo, o trecho "o meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua", revela um narrador que não viu problema em tomar emprestado um título, mas que logo em seguida prevê que podem querer lhe tomar a obra.
Na última frase "Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto", afirma Roberto, se substituirmos a palavra "livro" por "filho", a temperatura sobe consideravelmente, concluindo que alguns filhos só terão o nome de seus autores (pais), enquanto outros nem isso, uma referência a toda a dúvida que permeia a segunda parte da obra.
Em seguida, Roberto passou a citar as diversas leituras que a obra de Machado de Assis teve nos últimos 100 anos.
O livro solicita três leituras sucessivas e distintas: a primeira romanesca; uma outra, patriarcal, que trata do adultério; e a terceira, que mostra o narrador que tenta convencer a si e ao leitor da traição da mulher.
Na interpretação de Alfredo Pujol, há uma cegueira do crítico, dando apoio ao preconceito patriarcal e de classe, consolidado no plano literário. Por que se poria em dúvida o narrador do romance?
A mudança de enfoque na leitura de Machado começa a mudar na década de 60. Helen Caldwell, apresenta um trabalho que trata o "Otelo brasileiro de Machado" (The Brazilian Othello of Machado de Assis, a Study of Dom Casmurro), mostrando que o romancista havia inventado uma situação narrativa da mais surpreendente, como o de fazer Otelo narrar os pecados de Desdêmona. Ao mostrar que Machado inventa um narrador sem credibilidade, o autor toma a contramão da história do romance, indo contra o domínio patriarcal.
Roberto cita que a virada é considerável. Lembra a própria passagem do livro, quando Bentinho cheio de desconfianças, decide relaxar indo ao teatro, e assistindo nada menos que Otelo. E ao sair, conclui que se Desdêmona era inocente e teve um apoio do público, o que faria se fosse culpada como Capitu.
Na seqüência, Roberto apresenta a visão dos trabalhos de Silviano Santiago e John Gledson.
Como conclusão, temos hoje uma visão diferente da leitura de Dom Casmurro, na qual, se vê o problema do paternalismo no mundo moderno. Machado teve a audácia de transformar um tipo ideal da elite brasileira, em um problema, senão em um vilão, ao mesmo tempo que fazia dele um narrador. É como se num romance policial, o detetive fosse o assassino, exemplifica Roberto.
A obra de Machado levou 50 anos sendo lida como conservadora, do ponto de vista apenas do adultério de Capitu (assim condenada também pela crítica), até que a charada foi descoberta, e o ponto de vista mudou para o ciúme de Bentinho e a manipulação deste para convencer a todos que seus motivos eram justificados.
Após aplausos calorosos e merecidos pela conferência apresentada por Roberto, Hélio Guimarães, encaminhou um comentário próprio e as perguntas da platéia.
Hélio cita o primeiro romance de Machado de Assis, no qual também existe um personagem, Felix, extremamente atormentado pelo ciúme. Roberto explica que no primeiro romance de Machado, o ciúme é tratado como movimento psicológico, enquanto que em Dom Casmurro, há uma superposição da questão do ciúme, com a autoridade patriarcal, e o relacionamento do proprietário com o agregado.
Roberto cita que os primeiros quatro romances de Machado eram fracos, e que a partir do quinto, tornam-se geniais. Nesses primeiros, há sempre uma mocinha pobre, bonita e inteligente, que procura se engraçar de uma família rica, para usufruir dos benefícios dessa relação de proprietário e agregado.
Naquela época, de uma sociedade escravista, os brancos pobres não tinham como ganhar a vida, pois o trabalho era feito pelos escravos.
Para sobreviver, havia apenas um jeito: buscar o favorecimento de um proprietário - tornando-se agregados. Machado escreveu seus primeiros romances sobre essa relação, com simpatia pelos que estão debaixo, na situação dura de agregado, buscando defender uma civilidade dos proprietários e patrões.
Em 1880, oito anos antes da abolição, Machado escreve um livro completamente diferente dos anteriores, tomando um ponto de vista de cima, da maneira mais escrachada possível, expondo todos os malfeitos da relação patriarcal. Escreve em primeira pessoa, como se fosse em terceira.
Ele mostra nessa voz todo o mal que o autor enxerga na personagem. Machado foi cético em relação à abolição. Concluiu que os proprietários não iriam se civilizar depois da abolição. Roberto apresenta que essa é a grande virada da obra de Machado de Assis. Um lance de genialidade de Machado, mostrar o avesso do modelo ideal da sociedade da época.
Foi uma atitude arriscada que se pagou com 50 anos de uma leitura convencional. No princípio, Machado era um ídolo do confirmismo, tanto é que ele não era apreciado pela esquerda. Os leitores se identificavam com Machado, por quererem ser finos e elegantes como seus personagens, sem perceber o que de ruim estava por baixo deles. A releitura de Machado teve início na virada do sentimento político, a partir de 64.
Uma pergunta do público pede a interpretação de Roberto sobre a última frase do romance: "Vamos à História dos Subúrbios". Há um caráter enganoso no narrador, que tenta mostrar que a história de Capitu é menor, apenas um treino, para a história que seria mais importante, a dos subúrbios.
Outra pergunta pede a importância de José de Alencar na obra machadiana.
Roberto explica que a relação pública e explícita é de veneração. Contudo, mostra que Machado em alguns momentos, passa a limpo a prosa de José de Alencar. Em Lucíola, romance de Alencar, a personagem principal é uma prostituta virtuosa, que usa seu ofício para arranjar o dinheiro necessário ao sustento do irmão. Há uma famosa cena em que ela faz poses com roupas diversas, numa farra de subúrbio. O Machado, em Memórias Póstumas, usa a
personagem de Marcela, fazendo-a ser realmente do ramo, com a mesma cena de poses. Machado reescreveu a cena de Lucíola, sem o romantismo de Alencar.
Um outro caso, é o romance "A pata da gazela" de Alencar, no qual há um equívoco com uma moça que tem um defeito na perna. Em Memórias Póstumas, há uma moça coxa, que acaba da pior forma possível.
Como finalização, Roberto volta a falar da figura de Capitu, descrita no romance como irracional, mas que na realidade é a encarnação da razão, o que não era tolerado pelos proprietários paternalistas - o juízo próprio, o pobre de cabeça erguida.
Uma estréia magnífica. Esperamos ansiosos o resultado dos próximos dias da Flip.
Amanhã, às 10h, haverá a mesa "Primeiro Tempo", com Adriana Lunardi, Emilio Fraia, Michel Laub e Vanessa Bárbara, mediada por João Moreira Salles.
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