Diário (ou não tão diário assim) da escritora Ana Cristina Melo.
Um pequeno espaço para somar letras, contos e sonhos.
sábado, 4 de abril de 2009
Resenha: Era outra vez
Saber que existe um lançamento de Livia Garcia-Roza é sempre uma grande expectativa. Pois sabemos o que vamos encontrar em sua prosa: o humor refinado, as frases inteligentes, a narrativa que nos pega pela mão e faz com que estejamos ao lado de cada personagem. Um narrador conversa com o interlocutor que não somos nós, mas leitores abusados que somos, nos colocamos no papel dele. Nos colocamos no papel do narrador. A prosa de Livia é um abraço, apertado, porém solto. É uma prosa que bate, porém acaricia. Não tem como não sair modificado de um livro de Lívia. Acho muito mais forte essa sensação em seus romances. Mas que ninguém pense que os contos têm menos qualidades. Mas é que numa coletânea de contos, apanhamos de personagens diferentes. E mal nos recuperamos de uma, vem outra surra. Surra de flores. Pois ela bate, sem ferir. Ela bate para chacoalhar nosso íntimo.
E é chacoalhando nossas emoções que Livia começa o livro de contos “Era outra vez” (Companhia das Letras). Só que vários personagens que transitam por esse livro vêm de um lugar muito especial: as histórias infantis. Mas não pensem que esse livro é infantil. Longe disso. É ficção para adulto, para quem tem coragem de ler e aguentar o que as palavras competentemente arrumadas são capazes de nos mostrar.
O primeiro conto é uma homenagem à Maria Clara Machado e seu inesquecível “Pluft, o fantasminha”. Você já sentiu vontade de abraçar um fantasma? Pois é a sensação que tive ao ler o conto “Mamãe fantasma”. Abraçar essa mãe, de “claridade leitosa” igual ao seu filho, que tenta aconselhá-lo na fase em que um adolescente descobre o amor. Mesmo que seja um “fantaslescente”. E isso tudo com a maestria e imaginação que lhe são peculiares, em frases como:
“Claro que eu sabia que estava grávida, fantasmas engravidam à toa, basta nos cruzarmos no espaço”
ou
“Eu dizia que fantasmas não se casam, porque se encontram numa rapidez de raio, e a isso chamamos amor, a esse contato etéreo e fugaz, mas você não se conformava”.
(Esse conto foi publicado no Jornal Rascunho do mês de fevereiro).
No conto “A bruxa”, Livia nos traz o medo das crianças e a reação dos pais a essas crianças, mais do que a esses medos.
Em “O lobo mau” não podemos deixar de rir com um lobo que se cansa de ser o vilão e resolve tirar satisfação com a mãe da Chapeuzinho.
“— O Lobo Mau. Tá fingindo que não me conhece? Olha aí, garota, não estou a fim de te comer nem de comer a sua avozinha caquética, está me ouvindo? Sou um lobo, porra! Agora vai chamar sua mãe que eu não converso com criança”.
Em “Os três mosqueteiros” podemos confirmar que mesmo crianças podem ser cruéis. A diferença é que são outras crianças as vítimas dessa crueldade. E é o olhar infantil de uma prima de cinco anos que Livia nos apresenta nesse conto.
“À noite, enquanto vovó assistia à novela no quarto, meus primos fumavam escondidos na varanda, arriados nas cadeiras de palhinha, soltando puns, com as pernas esticadas, soprando bolinha de fumaça para o alto. Numa dessas vezes, quando me viram, perguntaram se eu tinha namorado. Respondi que eu tinha o namorado da minha amiga. E não sei por que eles riram, e também não sei por que jogaram o cigarro aceso na grama pra queimar as formigas.”
No conto “A cigarra e a formiga” a história é apenas o caminho para mostrar o olhar equivocado dos pais que só enxergam em seus filhos o que realmente lhes interessa.
“Ela disse que ia contar uma história porque eu gostava muito de conversar. Todos riram. Mamãe tinha escolhido a história da cigarra e da formiga”.
E é assim, passando por histórias como “O gato de botas”, no qual um menino usa o gato para atender seus pedidos mais egocêntricos; ou “A tartaruga e a lebre” em que o tempo dos pais não reflete o tempo esperado por seus filhos; ou ainda em “Os sete anões” em que uma Branca de Neve “prefere” os baixinhos ao príncipe; ou uma “Sherazade” moderninha que está namorando um árabe que ela diz que detonou umas e outras, pois sofreu pra caramba, que Livia nos encanta, como só uma boa fada é capaz de fazer.
Deixei para o final o conto que mais me tocou depois de “Mamãe fantasma”. É “A pequena sereia”. Temos aqui uma criança de olhar maduro, mas que se entrega à fantasia, como algum dia aprenderá a se entregar aos seus sonhos. E como essa fantasia pode lhe servir como uma amiga inseparável.
“Quis perguntar a mamãe se ela conhecia o Comandante, e ela disse que estávamos atravessando a rua e era para eu prestar atenção, não era hora de conversa. Olhei então para a sereinha, só que ela não me viu, porque estava no fundo do balde. Devia estar dormindo, com febre, por causa do resfriado”
E esse conto que já me embalou em toda a sua extensão, me abraçou com força em sua última frase.
Nossa percepção de adultos já está muito contaminada com as urgências do mundo contemporâneo. Livia realizou de forma grandiosa esse projeto, trazendo esses personagens infantis para recuperar dentro de nós as crianças que deveríamos manter eternas. Então é para ler outra vez, e outra, e outra...
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