domingo, 5 de outubro de 2008

Prêmios x Novos autores - Parte I

O que é divulgar os finalistas de um prêmio como o Jabuti ou o Portugal Telecom?

Para mim é conhecer quem está fazendo essa "boa literatura". É claro que fico feliz em ver um autor de quem gosto, e muitas vezes já consagrado no mercado, ganhando um desses prêmios. Mas o que me toca realmente é encontrar um nome desconhecido. E de repente perceber que não é tão desconhecido assim; que esses nomes nos dizem muito; reconhecer que aos poucos nos vinham sussurrando suas prosas.

Concluo que não são tão novos, o que ocorre é que passam invisíveis por nossas leituras tão diversas e tão exigentes.

Buscando desfazer essa impressão, decido investigar esses nomes. E descubro que há muito o que se dizer sobre eles. E nos cabe reler, pois muitas vezes já tivemos contato com suas prosas, ou ler pela primeira vez, e estabelecer uma opinião. Boa ou ruim. Não importa. Mas estabelecer uma opinião. É assim que começamos a abrir portas, a reconhecer os outros contemporâneos, a identificar vozes convergentes.

Comecei por Beatriz Bracher. Nasceu em São Paulo, em 1961. Foi uma das fundadoras da editora 34, onde trabalhou de 1992 a 2000. Publicou:
- Azul e Dura (7 letras / 2002)
- Não falei (Editora 34 / 2004)

Participou de algumas antologias de contos:
- "Aquela canção" (Publifolha) que usou doze canções da MPB como mote para as narrativas. (Veja como são as coisas. Li esse livro e nem me lembrava de seu nome entre os autores)
- "A visita" (ed. Barracuda), cujo mote é o tema que dá título ao livro.
- "+30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira" (ed. Record), organizado por Luiz Ruffato. (Outro livro lido, e outra vez seu nome passou invisível)

Antonio (Editora 34 / 2007), premiado em 3º lugar no Jabuti, e finalista do Portugal Telecom, é seu terceiro romance.

A história fala de Benjamin, o protagonista, que na iminência de ser pai (de Antonio) descobre um segredo familiar e decide saber dos envolvidos como foi que tudo aconteceu. Três deles - a avó, Isabel; Haroldo, amigo de seu avô; e Raul, amigo de seu pai - lhe contarão as versões dos fatos, e é recolhendo esses cacos de memórias alheias que Benjamim montará o quebra-cabeças da história de sua família. A narrativa é polifônica em que cada capítulo dá voz a um dos três narradores-personagens.

Graças ao google encontrei dois trechos do romance.

O primeiro tem como fonte a Folha Online, em matéria de 26/05/2007 (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u71399.shtml).

"Os homens, você sabe, Benjamim, os homens gostam de inventar histórias e fantasiam muito. Na época em que Xavier se apaixonou por Elenir, eu não o conhecia bem. Freqüentávamos os mesmos ambientes, as famílias se conheciam, mas era só isso. O mundo era menor, ele chamava atenção, talvez eu também, como te disse o Haroldo, mas não creio. Talvez eles reparassem em mim porque, sendo uma moça de boa família, eu fazia faculdade. Em geral só seguiam nos estudos as moças que precisavam trabalhar, isso não era esperado de nós.
Esses dias de hospital. Este quarto verde. É confuso estar parada. Nunca tinha acontecido, nem depois da aposentadoria. Continuei com orientandos, continuei escrevendo e participando de bancas e discussões. Sempre muito o que fazer. Não sou de ficar doente, depois dos partos, no segundo dia já estava de pé, subindo e descendo escada. Muitos dias falando pouco, as memórias vêm de longe, de bem antes dos filhos e, você tenha um pouco de paciência, Benjamim, quero te contar.
Lembro que no meu tempo não era muito bem, no sentido mais besta da palavra, ser estudiosa, buscar estudos, nem para os rapazes, nem para as moças. Era comum a rapaziadinha que não pensava muito em fazer faculdade, ou que fazia meio de qualquer jeito. Quando eu vejo hoje em dia o teu empenho em estudar, batalhar, conseguir uma bolsa e ir para os Estados Unidos fazer mestrado, especialização, esforçar-se para ser um bom profissional, é uma coisa nova. Isso não existiu muito na minha geração, porque eram todos filhos de gentes que tinham ou fazenda, ou banco, ou indústria. Das minhas colegas poucas foram para o Sedes, que era uma faculdade muito boa, onde a minha mãe se formou, foi da primeira turma, e, naquele tempo, era só para moças. A maioria ia fazer Lareira, era um curso, a gente brincava, de espera marido. Elas aprendiam a cuidar da casa, tinham umas aulas de educação sexual pouco claras, por aí ia. As mais chiques, e eram raras, iam fazer Finishing School na Inglaterra ou na Suíça. Eram escolas de acabamento, onde se aprendia a polidez.
A minha diferença foi ter ido para a USP, isso era uma coisa nova. Papai, teu bisavô, era oftalmologista, professor da faculdade, conhecia o dr. Emanuel Kremz de lá, não éramos uma família rica, mas éramos de "boa família" e era isso o que importava. Outro dia eu revi o Great Gatsby na televisão e fiquei pensando nessa diferença. Aquela classe alta norte-americana pós-Primeira Guerra tinha algo de muito selvagem, em muitos sentidos. A sede de diversão, a vaidade e a ostentação. A moça fala "moças ricas não se casam com garotos pobres", como se esse fosse um pensamento comum. Jamais diríamos isso aqui. Não falávamos de dinheiro, víamos, sabíamos, mas não era assunto. A diferença estava em outra parte.
Agora, lá em casa, papai não tinha a menor dúvida de que eu tinha que fazer a faculdade. Isso era uma coisa rara no nosso meio. Mesmo se eu não fosse filha única, sei que ele pensaria da mesma forma, não tinha a ver só com a educação da filha, era uma visão de mundo diferente. Ele dizia, "eu não vou deixar dinheiro para você, mas vou deixar uma boa educação".
Eu gostava de estudar, queria fazer Filosofia, e papai disse que eu podia fazer no Sedes, jamais na USP, se não eu ia perder a minha fé. Eu queria estudar na USP e, diante disso, eu resolvi fazer Letras Clássicas, foi uma ótima opção. Eu estudava muito, gostava demais da faculdade, foi um mundo absolutamente novo para mim, porque eu tinha entrado com sete anos no colégio, estava com dezessete, quando entrei na faculdade, e muito assustada, porque papai dizia: "só tem uma coisa, você vai fazer exame para a USP, trate de estudar muito porque vem de um colégio particular e vai competir com gente de colégio de Estado que é muito forte". Para você ver a mudança absoluta. Agora, de fato, ele não tinha tanta razão, porque como eu tinha tido a oportunidade de estudar bem inglês e francês, entrei em primeiro lugar e fiz muito bem a faculdade. A verdade é que a educação das freiras do Des Oiseaux também era muito boa.
A faculdade foi um ponto de transição importante, todo o ambiente era estimulante, o prédio novo --fui das primeiras turmas da Maria Antonia--, os professores estrangeiros, colegas de outras cidades, de outros meios. A guerra terminara fazia dois anos, os fascistas tinham sido banidos da face da terra, vivíamos em um mundo livre e próspero, necessitado de braços e mentes para ensinar e construir. Há muitas diferenças para a faculdade que meus filhos fizeram e mais ainda para a que você fez. Acho que uma coisa importante, além da transformação do papel da faculdade no tempo, mudança de espaço, a guetização dos departamentos, além disso tudo, havia para nós, no final dos anos quarenta, a diferença do colégio para a universidade. Era uma diferença brutal. Eu vinha de colégio de freiras, nunca havia estudado em uma classe mista e o próprio ensino era muito diverso. A mim pareceu que tinha vivido fechada em um casulo até então, foi um sentimento de liberdade.
Tentei reencontrar esse sentimento quando voltei a estudar, em meados dos anos sessenta, mas, então, a confusão era grande e, cada vez mais, o prazer nos estudos ficou menos coletivo e mais solitário. Em 77, 78, quando Teodoro resolveu viajar, muitos professores estavam ainda exilados, o ambiente era de desmonte e frustração, ressentimento também, sabia que ele não estaria perdendo grande coisa. Talvez por isso considerei o caminho de Teodoro mais corajoso que o dos irmãos.
Esses meninos passaram pelo golpe e a ditadura ainda crianças, imagino que o medo disseminado no país tenha tido algum efeito neles. Sei disso porque vivi a guerra em criança. Havia sempre o perigo dos submarinos alemães, os blackouts que precisávamos fazer como treino. Meu pai ouvindo no rádio as notícias das movimentações das tropas. Apesar de tão longe, sentia a iminência da violência e isso de alguma maneira nos marcou. Na nossa época o bem venceu de forma que nos parecia inequívoca e o mesmo não aconteceu com o sentimento difuso de medo e ameaça que a geração do teu pai viveu. Nós não tínhamos dúvida do nosso papel no mundo, ele havia sido destruído, precisava ser refeito. O espaço de ação que teus tios e teu pai encontraram foi outro."

O segundo trecho está na resenha do Jornal Rascunho.

"Não sei dizer se foi a morte da tua mãe ou ela mesma, o encontro com ela a causa dessa mudança na cabeça dele. Pensando nas palavras do Teo, sabendo hoje o que sei, penso que ele e ela sabiam quem eram, resolveram repetir a história. Para Teodoro eu tenho certeza de que aquela união era incestuosa. Dormir com a mulher do pai, quem agüenta uma coisa dessas sem depois furar os próprios olhos e vagar sem rumo? Ela precisava morrer, eles sabiam disso, um deles precisava morrer, e não seria novamente o bebê, é essa violência que entendo hoje.
Para tua mãe eu não sei, não a conheci, Teo a transformou quase em uma santa, a mãe que pariu o seu destino verdadeiro. Não sei te dizer por que, Benjamim, você é filho dela, você é muito mais determinado do que teu pai jamais foi, eu vejo isso e talvez seja errado falar sobre uma mulher que não conheci. Xavier e teu pai usavam palavras meio místicas para falar dela, da vida com ela. Não digo com Xavier, mas com Teodoro eu não consigo deixar de pensar que houve algo de cruel na tua mãe, de proposital em deixar-se morrer dando a luz a um neto de Xavier."

Algumas resenhas encontradas na web:

* Letras e Livros - Por Vinícius Jatobá
* Blog Olhando os Movimentos - Por Heidi Strecker
* Rascunho - Por Lucia Bittencourt

Sei que depois de tudo que pesquisei - mais importante para mim do que o resultado do Jabuti -, fiquei com enorme vontade de ler o romance da Beatriz. E acho que é isso o que importa. Captarmos esses pequenos cacos de opiniões, e ficarmos sentindo os espinhos da literatura nos cutucando, até cedermos à vontade de abrir mais uma página.

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